domingo, 4 de janeiro de 2009

Nacos de sabedoria

(Postado originalmente em 14/07/2008)

- Que foi?
- Que foi o quê?
- Por que está com esta cara?
- Talvez porque eu tenha nascido com ela.
- Uia! Que cavalice, eu hein?
- Não enche. Se você soubesse o quanto é chato quando estamos de bode, na fossa, afogados no oceano do tédio e vem alguém chapado até os ossos de otimismo inabalável para lançar a escrota pergunta-clichê "por que está com esta cara", não teria dito.
- Não está mais aqui quem falou.
- Infelizmente está.
- Quer que eu vá embora?
- Deixa eu ver.... Hãããã... Quero.
- Mas eu não vou! Ficarei aqui para ajudá-lo.
- Eu não preciso de ajuda. Eu não pedi ajuda. Eu não quero ajuda.
- E o que você quer?
- Eu quero você... Bem longe daqui.
- Mas o que eu fiz a você para que você me deseje mal?
- Primeiro: eu não lhe desejo mal. Segundo, você não fez nada e, no que depender de mim, nem vai fazer.
- Pois eu vou fazer sim. Porque você é uma pessoa especial, um ser de luz. Você é do bem! Tem que sorrir, tem que agradecer a Deus pela vida que tem, por ter amigos, uma família, por ser uma pessoa bonita por dentro e por fora. Você tem que dizer SIM às coisas boas, ao amor, à Deus. Não pode ficar assim, triste, derrotado. Isso chama energia negativa e, desta forma, as coisas positivas não acontecem. Vamos lá: eu quero ver um sorriso nesta cara AGORA! Alegria! Coragem! Esperança! Amor! Felicidade! Luz! Paz! Harmonia!
- Cala. Esta. Maldita. BOCA!
- Ai, credo!
- Escuta aqui, criatura. E escuta bem. Eu não estou legal. Veja bem: não estou perdido, nem derrotado, sequer vencido ou acabado. Eu só não estou legal. Só isso. Talvez menos legal agora por ter que escutar a sua ladainha pasteurizada. Os motivos do meu humor dúbio são diversos e não vem ao caso. E eu não tenho a obrigação de ser uma pessoa ensolarada. Pelo menos, não sempre. Simplesmente porque eu não sou um modelo de ser humano que se vende em propaganda de margarina. Onde sentimentos positivos ficam mumificados em nosso semblante. Eu sou de verdade, com um lado iluminado e outro na sombra. Sim, eu tenho o meu lado obscuro, como qualquer outro. Inclusive você, auto-proclamado emissário dos céus, tem seu esqueleto atrás do armário. E o que faz de mim uma pessoa melhor é justamente o fato de eu ter coragem de encarar de frente meus fantasmas. De assumir sem medo o crédito pelos pesadelos que assolam minha vida. Ao invés de adotar uma postura alienante que varre todos os problemas para debaixo do tapete. Então, se para você é cômodo adotar esta postura de felicidade eterna, de que você só tem sentimentos bons e energia positiva correndo neste corpo, vá para bem longe de mim. Porque vai chegar uma hora em que você precisará projetar o seu lado sombrio, que não tem canal de expressão, em outras pessoas. Pelo menos que seja em alguém disposto a ser perseguido por você. Eu não estou disponível.
- O-o quê?
- Este é o mecanismo da hipocrisia. Reconhecer no outro aquilo que a gente nega em si mesmo. É tentador apontar o dedo. Acusar. Julgar e setenciar. Sim, o fato de eu estar amuado, pensando nos meus problemas, não quer dizer que eu esteja mal. Muito pelo contrário, estou muito bem por sinal. Mas você reconhece no meu semblante melancólico uma oportunidade de redenção do seu lado mesquinho, sufocado pelo seu arrogante preceito de que a vida tem a obrigação de ser um mar-de-rosas, um arco-íris de alegria e felicidade. Então eu repito mais uma vez: não venha exorcizar o seu lixo em mim!
- Além de azedo, você é louco. Não diz nada com nada.
- Ah, eu sou louco? Então eu vou lhe mostrar do que um louco é capaz!
- Aiiiii! Você me mordeu!
- É que acabaram os argumentos.
- Seu animal! Eu vou embora daqui agora!
- Ah finalmente entendeu. Algo tinha que funcionar.

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