sábado, 29 de setembro de 2012

Isso é um elogio

Escove os dentes três vezes ao dia. E não esqueça o fio dental. Segure a porta do elevador para o seu vizinho. O troco que veio a mais, devolva ao distraído caixa do mercado. E não use sacolinha plástica. Fique até mais tarde no escritório para adiantar o serviço. E depois leve trabalho para casa. Seja pontual em seus compromissos. Pague a conta, mesmo se for convidado. Não compre o DVD pirata. Ligue para sua mãe com frequência para deixá-la tranquila. Coma mais salada. Quebre um galho para o seu amigo. E para o outro amigo. E para o irmão do seu outro amigo. E para a mãe do seu chefe. E para o chefe do irmão da mãe do seu amigo. E sorria. Sempre. Se você seguir a cartilha da virtude, esteja preparado: você vai ganhar um elogio.

Você provavelmente ainda terá os mesmos problemas. Quebrará a cabeça para saber como vai pagar as contas no começo do próximo mês. Ainda se sentirá sozinho, pois não consegue encontrar um interesse romântico que supra suas expectativas. Ficará um dia mais velho a cada dia que passa. Mas, como se trata de um exemplo de ética e cidadania, lá vem mais um elogio para a sua coleção de méritos em vida. Já conseguiu entrar para o livro dos recordes? Ainda não? Então siga se comportando. Para quê solução dos problemas quando se pode arrecadar uma infinidade de elogios, não é mesmo?
O elogio é uma das atitudes mais superestimadas do mundo. É uma forma socialmente aceita de deixar você à deriva. Um paliativo, uma fuga, um prêmio de consolação. Uma arapuca. Igualzinho ao açúcar, caso caiba aqui uma analogia gastronômica. O açúcar dá um colorido no humor, um alívio na ansiedade, uma ilusão de saciedade. Ma não passa de um veneno para o corpo: incentiva distúrbios alimentares, obesidade, cárie, diabetes, colesterol, insônia e outras tranqueiras que um nutricionista ficaria plenamente satisfeito em enumerar. Logo, seja o açúcar ou o elogio, é possível afirmar que uma vida mais doce não significa, necessariamente, uma vida melhor.
Claro que ninguém vai deixar de comer chocolate. Tampouco faltar com a gentileza. Mas não deixa de ser interessante perceber algumas intenções que se escondem por trás de um inocente elogio. Basta olhar com olhos de ver. Os casos aqui citados usarão o adjetivo “incrível” como elogio-base de nossas especulações, a fim de ilustrar o raciocínio proposto. Se você se sentir mais confortável, poderá trocar “incrível” por “foda” ou “ducaralho” para o melhor entendimento dos descolados de plantão. Ou “mara” para os representantes da diversidade. Sabe como é, o sistema de cotas está com tudo.
O elogio, muitas vezes, é moeda. Diga-se de passagem, uma moeda de cinco centavos.  Quando você faz uma proeza incrível, dessas coisas incríveis que se espera algo em troca, como um ato de gratidão, uma promoção, um pagamento, um favor ou outra coisa tão incrível quanto a sua proeza, o que vem lá? Um elogio! “Você é incrível”. E um tapinha nas costas como bônus.
Isso quando o elogio não passa de um exercício de pura vaidade pessoal. E vem com um autoelogio embutido. Quando alguém faz questão de elogiar e, na verdade, só está afirmando que a sua opinião é relevante, seu louvor é digno de ser expressado e a vida do elogiado se tornará melhor depois do elogio estabelecido. “Preste atenção no que eu estou lhe dizendo: você é incrível.”
Também tem o elogio sequestro-relâmpago. Quando alguém chega disparando elogios de forma brusca. Mas jamais aleatória: certamente vai mirar num desavisado com problemas de autoconfiança. A ideia é mantê-lo como refém em cativeiro e, assim, dispor de toda sorte de favores que precisar. “Você é incrível! A pessoa certa para me ajudar aqui nesta situação.”
O elogio ainda funciona como uma saída estratégica. Quando você chega, alquebrado de alguma porrada da vida, precisando de um apoio, alento, colo, ombro, aluguel de orelha ou qualquer forma de cumplicidade emocional, espiritual e/ou material, eis que entra o elogio em cena: “deixa disso, você é incrível, tenho certeza que vai sair desta”. É uma maneira gentil de deixar claro que você, além de ferrado, está por conta. Se vira, meu bem! Tá ruim pra você? Tá ruim pra todo mundo!
Claro que o elogio tem, sim, sua importância. Tornar a vida possível num mundo cruel através de pequenas gentilezas. Mas e quando todos ficam só nas pequenas gentilezas? Não estaríamos deixando o mundo mais cruel ainda desse jeito? A bolota de barro não precisa de elogios para girar. Precisa de oportunidades. E estamos tão ocupados em atualizar nossos perfis em redes sociais que não temos mais tempo para oferecer um gesto sequer. Seja um beijo, um abraço, uma carona, um prato de comida ou um cobertor a mais se esfriar à noite. Até mesmo uma perspectiva. Nada disso. Um elogio está de bom tamanho.
Talvez todo este raciocínio esteja equivocado. Posso estar sendo injusto com o elogio. Ou não. Vá saber... Se você chegou até aqui e quiser tecer uma crítica, fique à vontade. Mas, se gostou, não precisa elogiar. Basta refletir sobre o assunto. Parece pouco, mas é um passo além do elogio. E, dessa forma, ficarei verdadeiramente grato.

domingo, 29 de abril de 2012

A vida da morte

- Olá! Eu sou Uma Q. Walker e estamos aqui hoje no nosso programa Uma Para Te Contar com esta entrevista exclusiva e inédita. Nossa convidada, muito especial, todo mundo conhece, é uma grande notoriedade, mas sempre procurou exercer o seu trabalho de forma discreta e sem muita exposição. Pela primeira vez aqui, com vocês, a Morte. Boa tarde, Morte. Tudo bem com você?
- Tudo ótimo, Uma.
- Morte, você não morre tão cedo! Ah ah ah! Eu sempre quis dizer isso!
- Morri com esta...
- Não poderia começar esta entrevista de outra forma. Morro (brincadeira!) de curiosidade de saber. Depois de atuar na surdina por tanto tempo, por que dar uma entrevista agora?
- Então, Uma, os maias me contrataram para uma ação promocional do calendário deles. Parece que temos um grande evento no final deste ano.
- A audiência brasileira agradece a preferência.
- Na verdade eu prefiro os mexicanos. Eles sabem me celebrar como ninguém. Mas tudo bem, os brasileiros também moram no meu coração.
- É mesmo? Estou curiosa para saber por quê.
- A curiosidade matou o gato.
- Ah, ah, ah. Nossa, nossa, assim você me mata!
- Não precisa pedir duas vezes, Uma.
- Hãã... Acho que vou parar com as piadinhas e seguir com a entrevista.
- Esperto de sua parte.
- Como é viver na companhia de cadáveres, múmias, pedras e outras coisas mortas?
- Deixe as pedras fora disso.
- Sério? Por quê?
- Porque as pedras não estão mortas. Elas são inanimadas. É outro departamento.
- E qual a diferença?
- A diferença é que elas nunca foram vivas. Então eu nunca precisei visitá-las. Entenda que eu sou parte de um processo maior que envolve a vida. Eu existo porque a vida existe. Do contrário tudo seriam pedras.
- Que lindo isso que você disse! Posso postar no meu Facebook?
- Citando a fonte, tudo bem.
- Ah, legal! Então, dando continuidade ao nosso papo, o que você acha da legalização do aborto? É um bom negócio para você?
- Sei lá. Tanto faz...
- Como assim “tanto faz”?
- Então, tanto faz.  Esta pergunta é tão reducionista.
- Reducionista?
- É verdade. Estão expondo este aspecto da minha atuação. Eu sou muito mais ampla. Me faço presente na existência de vocês de muitas outras formas, em vários outros momentos.
- Como assim?
- Me vinculam somente a aborto, assassinato, suicídio, ataque cardíaco, doença, velhice... Como se a minha vida se resumisse a este tipo de festinha todo dia. Nada disso. Estou nas pequenas coisas também. Estou na bandeja de bifes cortados no freezer do mercado. No cacho de bananas que apodrece lentamente na fruteira em cima da geladeira (todos preferem comer chocolate). Nos mosquitos mortos com a raquete elétrica (amo sadomasô). Também estou nos fios de cabelo que entopem o ralo da piscina. No esperma que escoou pelo ralo do chuveiro depois da masturbação e não vai fecundar porra nenhuma. Até mesmo nas flores deste arranjo que foram mutiladas e mergulhadas num vaso com água. Apenas para enfeitar este estúdio. Elas estão aqui, morrendo lentamente. E vocês ainda acham bonito! Não entendo por que justo o aborto é um aspecto tão importante assim do meu trabalho que mereça uma atenção especial.
- Talvez porque seja um ato deliberado?
- Você disse “ato deliberado”? Como, por exemplo, a guerra? Vejamos, a guerra é um ato deliberado que resulta em muitas mortes. Mas assim, muuuuuitas mortes! Nossa, eu trabalho feito uma camela quando uma guerra é declarada. E não vejo ninguém se mexendo para proibir a guerra. Arrisco dizer até que ela é incentivada. Estou vendo aqui, a minha agenda esteve lotada nos últimos dez mil anos.
- Você prefere não falar sobre aborto. É isso? Prefere evitar polêmica.
- Do meu ponto de vista, a polêmica não existe.
- Não?
- Não mesmo. É mais ou menos como a história da proibição da sacolinha plástica no supermercado visando a questão ecológica. Num lugar abarrotado de produtos que são, na sua grande esmagadora maioria, embalados por plástico, jogar a culpa na sacolinha é tapar o sol com a peneira (de plástico).
-  Peraí, não entendi. A sacolinha não é a tal da inanimada? Ou ela morreu e eu não sabia?
- A questão é que a sacolinha não é nada. O aborto não é nada. São apenas pautas que vocês cultivam para se distraírem enquanto eu não chego.
- Morte, você diz coisas lindas de morrer. Mas este programa passa às 16h e talvez a nossa audiência fique um tanto perdida. Dá para simplificar um pouco?
- Entendi. Então vamos colocar assim: não tenho uma opinião sobre o destino de um feto do qual eu não participei da concepção. Prefiro ter uma opinião sobre meus filhos.
- Ah, você tem filhos?
- Tenho sim! São a minha razão de viver (com o perdão do trocadilho). Os coloquei no mundo para dar continuidade ao meu trabalho. E eles têm feito isso direitinho, sabia?
- E a gente conhece algum deles?
- Claaaaaro que conhece! Inclusive tem grande intimidade com a caçula! A minha filhota mais nova é a Internet! Ela saiu igualzinha a mãe! Já matou a ortografia, o cinema, o teatro, as lojas de disco, o sexo e a troca de afeto. Eu não poderia estar mais orgulhosa!
- Gente, olha que incrível esta revelação! O nosso programa Uma Para te Contar hoje está de matar!
- Pensei que tivesse parado com as piadinhas.
- Ah ah ah. Eu não resisto. A conversa está muito boa, mas o tempo está acabando.
- Eu poderia jurar que esta fala é minha.
- Incrível o seu timing, Morte.
- Sim, sempre apareço na hora certa.
- Para finalizar, gostaria de deixar um recadinho para os seus fãs brasileiros?
- Sim, claro! Brasileiros, parem de pensar na morte da bezerra. Variem o tema. Pensem um pouco na morte do potro, do frango, sei lá... Podem pensar até mesmo na morte da originalidade, do bom gosto, da autenticidade. Isso seria tão mais produtivo para a breve vida de vocês. E quando nos encontrarmos, teremos assunto, né?
- Espetacular. Gente, eu sou Uma Q. Walker e este foi mais um programa Uma Para te Contar. Hoje entrevistamos a Morte. Obrigado, Morte, pela sua presença!
- De nada! Podemos ir embora agora?
- “Podemos”? Como assim?
- Ah, Uma, qualé... Você acha mesmo que eu vim aqui só dar uma entrevista? Chegou a sua hora, querida. Vamos nessa.