quarta-feira, 24 de dezembro de 2014

Esperando anos

Eu sempre tive uma implicância com o numeral catorze. Tem gente que fala "quatorze". Na segunda série, a professora ensinou que as duas grafias eram corretas. No alto dos meus sete anos, me senti ultrajado. Se todos os números tinham uma única forma de se apresentar, quem o catorze pensava que era para ser, assim no mais, quatorze? O quatro, se desse na telha, não poderia ser chamado de "catro". Não lhe deram esse direito. Isso não estava certo! O catorze, em termos de indignação, só perdia pra letra "h", aquela que não tinha som nenhum (então, pra que existir se não serve pra nada?). Enfim, uma criança perdendo o sono com as injustiças que lhe cabiam.

Talvez seja o eco desta birra infantil que tenha melado o meu entendimento com o ano vigente. Fiquei com esta impressão, do ano que foi uma coisa, mas poderia ter sido outra. 2014 se revelou da forma como bem entendeu, imitando sua peculiar variação gráfica. Prometendo uma pá de coisas e, no lugar dos resultados, oferecendo outras novas promessas. Pra quem padece do encosto da ansiedade, foi uma verdadeira provação.

Bem, são (quase) águas passadas. Agora tem o quinze chegando aí. Pensei em idealizar um ano cheio de surpresas, realizações e outras coisas bacanas. Mas acabo de lembrar que, desde o primário, também guardo implicância com dígrafos (duas letras soando como uma? Que marmota!). Não adianta, tenho TOC. As implicâncias são vitalícias.

Mas isso não é motivo para ser derradeiro ou fatalista. O ano nem bem começou e já vou olhar atravessado? O momento pede perspectiva. Talvez seja hora de olhar os anos que passam de outra forma. E me tornar o marco zero dessa mudança que espero na vida. Deixar a ortografia de lado e apostar em unidades de medida. Quinze é um quarto de hora. Dificilmente escuto meio-dia e quarenta e cinco. Todo mundo fala quinze pra uma. E pode ser neste insight, o da antecipação do um novo momento, a contagem regressiva, de acertar os ponteiros, tocar o despertador e fazer o cuco piar que seja interessante enxergar 2015. Pode ser que eu não precise de um ano novo. Talvez sejam os anos que precisem de um novo eu.

É... Talvez seja isso.

Então, pessoas, feliz novo ano! Feliz novo eu! Feliz novo você! Temos quinze minutos para nos livrarmos de tudo que nos impede de fazer da vida aquilo que a vida deveria ser.

Sigamos!

segunda-feira, 15 de dezembro de 2014

Orange is the new black

- Boa tarde! A senhora já sabe o que vai pedir?
- Oi, eu vou querer só um suco de laranja.
- Okay! Suco de laranja saindo!
- Ah, e sem açúcar, por favor.
- Perfeito! Sem açúcar!
- E sem gelo também.
- Certo, sem gelo...
- E sem laranja.
- Sem la... Perdão... Sem “laranja”?
- Sim, sem laranja. É que laranja não me cai bem. Muita acidez, ataca meu estômago.
- Mas, senhora...
- O quê?
- Um suco de laranja “sem laranja” não é bem um suco de laranja. Tem certeza que não quer pedir outra coisa?
- Olha, meu querido... Semana passada a Giovanna Antonelli apareceu na novela tomando um suco de laranja. Desde então é só o que se pede em lanchonetes. Você não pode me dizer pra fazer vista grossa ao grande hype do momento em termos de refresco! Está querendo me chamar de cafona? De brega? É isso?
- Não, minha senhora! Longe de mim! A senhora é finíssima!
- Então me veja um suco de laranja. E sem laranja. É tão difícil assim?
- Acho que entendi. A senhora quer uma água mineral sem gás.
- Ai... Não, não, não! Gente... Que dificuldade! Não sei o que é tão complicado de entender. Sabe laranja?
- Sim, senhora, eu sei o que é uma laranja!
- Então prepare um suco com esta fruta. Mas na hora de fazer, tire a laranja! Viu como é simples?
- Senhora... Pensa comigo....
- Que rapaz insolente! Cadê o gerente deste estabelecimento? Chame ele aqui agora! Perdi a paciência!
- Opa! Não! Calma... Não precisa chamar ninguém. Está tudo sob controle. Sabe o que é... É que aqui, pra evitar umas tranqueiras tipo fungo, micose, salmonela... Não trabalhamos com laranjas naturais. Aqui é só suco em pó mesmo. Tang, Clight, Frisco... Estes pequenos laboratórios químicos que cabem num envelope.
- Jura?
- Sim, minha senhora! Não dá mais pra confiar em laranja! Fruta de clima temperado... Aquecimento global bombando, as laranjinhas chegam aqui todas vencidas. Essa onda de piriri que tá rolando é tudo culpa de suco de laranja natural.
- Estou passada!
- A senhora e todas as laranjas! Passadíssimas!
- Mas a Giovanna....
- Aquilo provavelmente é suco cenográfico. Eles jogam anilina no drinque da artista na hora de gravar.
- Entendi...
- Pra senhora ver como são as coisas.
- Mas isso não é justo! A Shir, a Rô, a Sú, a Flá, a Rê loira, a Rê morena, a Rê ruiva... Todas as minhas amigas estão tomando suco de laranja! Eu não posso ficar de fora!
- Mas... E se a senhora entender isso não como um problema.... Mas uma oportunidade!
- Uma oportunidade?
- Sim! De se firmar como uma pessoa autêntica! De opinião! Que sabe o que quer! Que não se deixa levar pela manipulação midiática! Que está além deste controle! Você não quer ser uma pessoa assim?
- Uau! Eu... eu quero sim!
- Então! Me diga qual é a fruta que a senhora mais gosta?
- Hmmmm... Gosto de framboesa.
- Então! Um suco de framboesa no capricho!
- Me parece uma excelente pedida!
- Ah, viu? Eu não te disse?
- Obrigada por me ajudar. Só quero fazer uma pergunta.
- Pois não, senhora?
- Essa framboesa de vocês... É cor de framboesa mesmo? Não tem uma variedade, tipo assim... Mais alaranjada?
- Não, senhora. Nossa framboesa tem cor de framboesa...
- Hmmm, entendi. Mas e o copo? Tem copo laranja?
- Trabalhamos com copo de vidro sem cor, senhora.
- Sem cor?
- Sem cor.
- Nem mesmo um detalhe de design... Tipo... Uma rodela de laranja enfeitando o copo?
- Infelizmente não, senhora.
- Então... Faz o seguinte. Deixa assim. Não vou querer nada.
- Ué... Desistiu do suco de framboesa?
- É... Sei lá. Perdi a vontade. Mas obrigada por tudo.
- A senhora que sabe...
- Vou indo... Ah, mais uma coisa!
- Pois não?
- Você pode embrulhar pra viagem?

quarta-feira, 29 de outubro de 2014

Gay for dummies

- Olá, eu sou Dona Coisinha e estamos começando mais um Coisa com Coisa, o talk show feito para você que, assim como eu, é uma pessoa normal! No programa de hoje temos uma entrevista pra lá de polêmica! Nossa produção saiu às ruas, nesse mundo afora, uma terra sem lei, e conseguiu capturar... Hã, quero dizer, “convidar para ser entrevistado” um autêntico exemplar de homossexual. Estamos aqui hoje com esta... "pessoa" que vamos chamar pelo nome fictício "Pedro" a fim de preservar a sua verdadeira identidade e evitar a indevida exposição. Oi, "Pedro"! Tudo bem?
- Oi, Dona Coisinha! Na verdade, eu me chamo Pedro mesmo.
- Okay, se prefere assim, vamos começar, "Pedro Mesmo"!
- Hã, na verdade é só Pedro.
- Gente, eu posso com isso? É melhor você se decidir logo. Esta mudança brusca de opinião é uma dessas coisas gays?
- Como assim, "coisas gays"?
- Então "Só Pedro"...
- Pedro.
- Então, "Pedro"... É justamente pra isso que você veio aqui hoje. Porque nós, pessoas normais, estamos precisando de um tutorial gay, entende? 
- Tutorial gay?
- Sim! Veja bem: Deus criou as mulheres solteiras e homossexuais para serem perseguidos e apedrejados. Só que com as eleições brasileiras de 2014, tudo ficou meio estranho, sabe? Não sei que macumba aquela distinta senhora avulsa e seu peculiar amigo invertido que já foi estrela de reality show fizeram para conquistar posições tão respeitosas no cenário político nacional... Mas, conquistaram, né? E agora, ao invés de apedrejar, temos que, vejam só, “di-a-lo-gar”.
- Ah, claro! Diálogo sempre funciona.
- Funciona, sim. Num bom roteiro de novela... E por falar em novela, chegamos ao primeiro assunto do programa: beijo gay. Autor de novela agora virou terrorista, porque vive ameaçando a sociedade com um beijo gay em horário nobre. O beijo gay é uma coisa hedionda! Mas, a gente que é normal, não sabe como ele é, porque, quando vai acontecer, a gente vira pra não olhar. Quer dizer, sabemos que é horrível, mas não sabemos como ele funciona. "Pedro", você poderia então, nos descrever a dinâmica de um beijo gay?
- Essa é fácil!
- Ui! Vocês aí de casa, se preparem! O programa de hoje promete! Nosso convidado, que resolvemos chamar de "Pedro”...
- Esse é meu nome.
- ... Vai nos contar os detalhes sórdidos de um beijo gay! Tirem as crianças da sala!
- Então... Vamos supor que eu estou andando por aí e, de repente, cruzo com um rapaz interessante e rola um clima...
- Esse “rapaz interessante” seria o Laerte?
- Hmmmm... Não necessariamente.
- Esse “rapaz interessante” votou na Dilma?
- Não sei, a gente se cruzou de repente. E como rolou um clima, eu estou mais preocupado em beijá-lo do que saber as suas opiniões políticas. Estamos falando de beijo, certo?
- Eu acho que ele votou na Dilma.
- Bom, que seja! Posso continuar a história?
- Sim, claro.
- Então. Rola este clima, a gente vai se aproximando. Nossos lábios se encontram, nossas bocas se encaixam e, por fim nossas línguas se entrelaçam.
- E depois?
- Depois o quê?
- O que acontece depois disso?
- Nada. O beijo acaba.
- Não, você entendeu errado, "Pedro". Eu não pedi a descrição de um beijo normal. Eu e meus telespectadores queremos saber como funciona um beijo gay. O que ocorre durante tudo isso o que você disse? Enquanto vocês tocam seus lábios vocês cometem algum infanticídio em nome de Fidel Castro?
- Hmmmm, não.... Ninguém morre.
- Jura? E não fazem alguma oração a um anjo caído ou divindade de culto politeísta antes de trocar saliva?
- Não.
- Nem depois?
- Nem depois.
- Esse beijo não acontece diante de uma urna eletrônica enquanto ambos votam na Dilma?
- Não acho seja possível beijar alguém durante uma votação como esta.
- A Dilma não traz um grupo de médicos cubanos para fazer um strip-tease enquanto vocês se beijam?
- Hã... Não imagino coadjuvantes em coreografias excêntricas. Acho que o beijo gay é bem simples. Boca com boca e pronto.
- Muito estranho. O beijo que você descreveu me parece bastante normal.
- Talvez seja.
- Ou... Talvez você não seja gay. Você me parece normal demais para ser um gay.
- Talvez gays sejam normais.
- Ah ah ah! Que timing pra humor! Isso é uma daquelas coisas gays? Fazer rir? Bem, de qualquer forma, não podemos atrasar com a pauta do programa. Próximo assunto: casamento gay. Você se imagina casando, "Pedro"?
- Quem sabe... Se eu encontrar a pessoa certa...
- Não se iluda, criaturinha! Não existem pessoas certas nesse seu estilo de vida. Só as pessoas normais estão certas! Mas me conte. Como seria este casamento gay? Estamos todos curiosíssimos para saber.
- Bem, tendo eu certeza que gostaria de passar o resto de minha vida ao lado de um interesse romântico...
- Ah ah ah!
- O que foi, Dona Coisinha?
- Engraçado você! "Interesse romântico"... Todo mundo sabe que romance é uma coisa normal. O que você e seus amiguinhos fazem é outra história.
- Então... Tendo eu certeza que gostaria de passar o resto da minha vida ao lado de alguém que estivesse disposto a fazer "outra história" comigo... Nós conversaríamos sobre isso, marcaríamos a data, convidaríamos nossas famílias...
- Mas suas famílias brigaram com você!
- Hmmmm, não... Tenho uma boa relação com a minha família, pra falar a verdade.
- Ah, entendi. Você está “no armário”! Todos pensam que você é normal!
- Não, Dona Coisinha. Só estou descrevendo como seria um casamento gay.
- Claro, desculpe, pode continuar.
- Convidaríamos nossas famílias, amigos, daríamos uma festa. Chamaríamos um juiz de paz, selaríamos a união e brindaríamos com uma bela festa.
- E depois?
- Depois o quê?
- Eu preciso saber o que configura este casamento como “gay”. Você só me descreveu um casamento normal. Vocês promovem uma passeata de mendigos para invadir propriedades de pessoas normais enquanto se casam?
- Acho que não. Essa revolução toda não iria combinar com o tule dos bem-casados.
- Vocês votam na Dilma durante a cerimônia?
- Acho que nem é viável, Dona Coisinha.
- E nada de vaginoplastia coletiva em poodles para transformá-los em pets travestis e usar seus testículos como aperitivo da recepção?
- Acho que preferiria algo mais clássico. Pensei em bolo com espumante.
- Já sei! O Jean Wyllys é sua madrinha!
- Não!
- Dama de honra?
- Não!
- Aia?
- Não...
- Jean Wyllys e Dilma sequestram todas as criancinhas durante o casamento e mandam pra Cuba trabalhar como escravas nas plantações de maconha para fins medicinais!
- Dona Coisinha, sua imaginação é um caso à parte! Mas eu realmente penso numa cerimônia simples. Talvez soltar pombas brancas no final.
- "Pedro", você não está me ajudando! Eu não pedi pra você me descrever um casamento normal!
- Ai, Dona Coisinha! Me desculpa! Mas é assim que eu imagino casar!
- Produção? Cadê produção? Eu pedi um daqueles homossexuais aqui. Esse cara nem sabe quem é direito. Só fala coisas normais. Se fosse realmente gay não pararia um minuto de falar em sexo anal! Fale sobre sexo anal, “Pedro”! Prove que você é gay!
- Interessante você tocar neste ponto...
- Jura?
- Dona Coisinha... Você gosta de dar o cú?
- Menino!!!! Mas o que é isso? Estou chocada com a sua pergunta. Quem você pensa que eu sou para falar de uma coisa tão... tão... Íntima assim em plena rede nacional?
- Que bom que você pensa como eu, Dona Coisinha! Então concordamos que cada um deve cuidar do seu próprio rabo, não é mesmo? Próximo assunto!
- E depois dizem que homossexuais são delicadinhos. Quanta grossura! Até parece homem. Se não fossem suas predileções grotescas, poderia muito bem passar por uma pessoa normal.
- Então, Dona Coisinha. Você bate nesta tecla do “grotesco” e “hediondo”. Mas gostaria que você me acompanhasse num raciocínio lúdico.
- “Raciocínio lúdico”? É uma dessas coisas gays?
- Não. É só uma figura de linguagem. Vamos supor que o considerado relacionamento normal seja um pote de sorvete com uma bola de chocolate e outra de morango. Mas, de repente, alguém prefere fazer diferente e resolve pedir duas bolas de chocolate. Ou duas de morango. Como esse novo arranjo de sabores pode ser tão grotesco se eles já faziam parte da receita original? Só saiu um sabor e repetiu outro. Não há nenhuma mudança tão drástica no cardápio que justifique uma repugnância tão contundente.
- Ah, agora entendi!
- Entendeu, Dona Coisinha?
- Claro! Dilma e Jean Wyllys fabricam sorvete de chocolate envenenado e repassam para homossexuais, que usam o doce drogado para seduzir crianças no portão de escolas. É tudo um grande esquema de tráfico de órgãos e prostituição infantil com conexões em Cuba e na Venezuela!
- Dona Coisinha, essa sua obsessão por violência infantil, paranoia política e perversão não é uma coisa muito normal.
- O quê???? Você está querendo dizer que sou uma anormal? Mas não sou gay! Eu sou uma mulher que conhece muito bem o seu devido lugar. Inclusive preciso terminar este programa logo! Tenho que ir pra casa correndo receber um corretivo do meu marido por atrasar o jantar. Pois resolvi estar aqui “di-a-lo-gan-do” com você, ao invés de cuidar do lar.
- Gente, eu desisto. Posso ir embora?
- Pode, “Pedro”!
- Adeus, Dona Coisinha!
- Tchau! Vai com Deus! Ah, desculpa! Me esqueci que, com você, Ele não vai. Então se vira aí, vai pela sombra, sei lá... O Coisa com Coisa de hoje chegou ao fim! Graças a Deus! Como é bom ser normal, não é, gente? Na semana que vem, o tema do programa será: Ebola – cada continente com seus problemas. Até lá. Beijo, tchau!

domingo, 19 de outubro de 2014

Carta aberta aos corações fechados

Guarde estas palavras para quando todas as outras abandonarem você. Será no momento em que você se encontrará só.

A bem da verdade, só, você sempre esteve. E sempre estará. Mas foi programado para ser carregado no colo das ilusões cruéis do pertencimento e da inclusão. A ponto das pernas da sua autoestima atrofiarem. Impedindo, assim, qualquer intenção de seguir em frente por conta própria.

Você costuma me olhar dos pés à cabeça, verticalizando estes valores questionáveis inseminados no seu coração fechado. Sendo que tudo acontece em outro plano: é no horizonte que residem todos os haveres que valem a pena.

Um coração fechado não sangra, mas também não pulsa. Se resume a meio quilo de pedra parcamente ovalada pesando em seu tronco e na sua capacidade de oferecer movimentos interessantes que germinam o dia de amanhã.

Você estará só. Agarrado ao sentimento de segurança que herdou lá na sua gestação. Um porto seguro composto de níquel, fibra ótica e frustração.

Você quer viver. Mesmo que não admita este desejo. Pois não costuma dar o braço a torcer ao que realmente importa. Afinal, você é humano. Tem o direito de errar e o dever de me culpar pelos seus erros.

Defenderá a própria miséria, pois não quer sangrar antes de pulsar. Nem chorar antes de sorrir. Tampouco queimar antes de se refrescar. Visto que a dor vem alardear a vida a plenos pulmões. E você exigirá silêncio na sua biblioteca particular de paranoias.

Guarde estas palavras para quando você estiver só. E, enquanto repassá-las no seu desalento, aproveite para vislumbrar a cacofonia de trocas universais orquestrada pelas pessoas que pulsam.

Tum-tum.

domingo, 3 de agosto de 2014

Pensar ainda é de graça

O homem se difere dos outros animais por ser civilizado. E esta civilização, que nos salva de sermos capivaras, é um sistema de organização coletiva que tem por objetivo a arrecadação de impostos. Afinal, o que é a sociedade senão um bando de gente amontoada em centros urbanos vivendo reféns de valores morais padronizados? E, o mais importante, pagando para manter isso tudo. Sim, a civilização é hierarquizada: arrecada quem manda, manda quem pode, obedece quem precisa, paga quem obedece e os incomodados que se retirem com gás lacrimogêneo.
Imposto é uma palavra desagradável. É o particípio passado do verbo impor. E, vamos combinar, ninguém em sã consciência curte imposições. Mas elas existem. Em forma de percentuais milimetricamente fracionados. Os impostos, assim como Deus, são onipresentes e onipotentes. Pagamos imposto para comer, se vestir, transitar, morar, receber o próprio pagamento e até para aprender. Só falta pagarmos impostos para fazer sexo. Mas as autoridades liberaram a prática sexual porque entendem que, em caso de fecundação, novos pagadores de impostos surgirão (o que é interessante para a manutenção da máquina de arrecadação). É por isso que o sexo entre pessoas do mesmo gênero não é visto com bons olhos. Homofobia? Nada! Isso foi só uma desculpa para render pauta na mídia. O que o sistema não admite são duas pessoas se divertindo sem que alguém de fora possa tirar vantagem disso. Felicidade não gera cobrança de impostos. Sexo, então, só para fins de procriação (de tributos).
O homem surgiu, a política nasceu e o imposto prevaleceu. Antigamente, nas monarquias, essa cobrança tinha uma finalidade clara: enriquecer o imperador. Com o tempo, a civilização evoluiu e hoje temos a democracia, onde o papel dos impostos mudou. Atualmente se paga para garantir as condições básicas da gestão pública. E, por “gestão pública”, entende-se jatinhos particulares, latifúndios rurais e mansões suntuosas em ilhas paradisíacas. Ou seja, só o essencial.
Acontece que os impostos cobrados não são suficientes. Acaba faltando para algumas outras coisinhas surpéfluas. Tipo saúde, educação, segurança e outras chatices das quais algumas pessoas inconvenientes vivem se queixando. Que porre! Como os luxos pessoais das autoridades não podem deixar de ser prioridade, a solução é criar novos impostos para garantir estas despesas extras. E calar a boca desses reclamões! Sendo assim, no intuito de unir o útil ao agradável, aqui segue algumas sugestões de impostos que podem otimizar essa arrecadação extra necessária:
- IPEDVCDVM (Imposto sobre Produto Excedente a Dez Volumes no Caixa de Dez Volumes do Mercado) – Brasileiro só sabe contar até nove. Depois disso, qualquer número é dez. É só olhar na fila de dez volumes no caixa do mercado. Carrinhos com quinze, vinte, trinta volumes. Cobrando o imposto sobre cada produto excedente ao décimo, teremos uma forma eficiente não só de arrecadação, como também de ensinar fundamentos básicos da matemática a todos os cidadãos. Enfim, um imposto realmente direcionado à educação!
- ISRRR (Imposto sobre o Selfie de Refeição em Restaurante Refinado) – É feio exibir fartura num mundo onde tantos passam fome! Mas, com a criação deste imposto, ao menos é possível fazer isso com a consciência em dia. Compartilhe virtualmente sua gula com tranquilidade, sabendo que a cobrança da postagem vai garantir um prato de comida a alguém necessitado.
- IUALKCRS (Imposto sobre Uso Abusivo da Letra K em Comentários de Redes Sociais) - “KKKKKKK”? Jura? Vamos combinar: ninguém ri assim, de risada histérica. Num mundo violento, injusto e cruel, com tanta cobrança de impostos, só quem ri dessa forma são as pessoas podres de rica. E elas nem usam internet. Desconhecem completamente o função do K digitado em série. Preferem se divertir usando seres humanos de verdade. Já aos reles mortais, quando muito, sobra a oportunidade de um sorriso tímido, quiçá uma risadinha irônica. Então, está na hora de usar uma expressão de gracejo na internet que seja condizente com a realidade do internauta. O imposto para cada letra K digitada em série e em caps lock se tornará um rentável tributo e uma eficiente lição de adequação à realidade aos fanfarrões virtuais.
- IIICD (Imposto sobre Igrejas Inventadas que Cobram Dízimo) – E se o Templo de Salomão pagar IPTU? Talvez seja esta a criação de imposto mais urgente. Está crescendo em progressão aritmética o número de porta-vozes religiosos que enriquecem em progressão geométrica através da boa fé (e da parca renda) de uma considerável parcela da população. Uma equação que envolve carisma, fábulas bíblicas, privilégios legais e falta de instrução das massas. E o resultado é preocupante. Tudo às custas de baratas tontas sugestionáveis que nunca irão fazer o selfie de refeição em restaurante refinado, pois o dinheiro que usariam pra comprar smart phone e registrar o almoço, destinam ao dízimo. Perpetuando, assim, um ciclo de ignorância e retrocesso que sustenta a desigualdade social e emporcalha o real conceito de espiritualidade. O exercício de fé é pessoal é intransferível. Mas tem muito líder religioso por aí que aceita transferência, a bancária. Garantindo, portanto, que a humanidade siga se diferenciando dos outros animais. Até porque bicho não se aproveita dos seus semelhantes. Ou alguém já viu vaca cobrando sobre o seu leite ordenhado? E abelha, sobre o mel, alguém sabe?
Bem, esses foram só alguns apontamentos e sugestões. Que provavelmente nunca se concretizarão de fato. Por ser tratarem de uma piada. Ou de algo sério demais. Enfim... A mim, só resta seguir escrevendo lorotas e criando provocações. Antes que alguém invente o ITEOAP (Imposto sobre Textos Engraçadinhos que Oferecem Alguma Perspectiva).

sexta-feira, 30 de maio de 2014

Nua e Crua

Olá, eu sou a Verdade. Entrei para o Livro dos Recordes como a entidade recordista de porta-vozes. Todo mundo fala em meu nome! Engraçado que nunca recebi convite pra um cineminha, um chopinho no happy hour, nem mesmo um café depois do almoço. Ninguém manda inbox no Facebook perguntando como foi meu dia... Isso mesmo: ninguém sabe da Verdade! Por isso, todos me representam sem o menor conhecimento de causa. E ainda lucram às minhas custas sem me pagar um centavo sequer de direitos autorais. Um absurdo, não é Verdade?

E essa situação ficou ainda pior com as redes sociais. Essa galera virtual se acha dona da Verdade e vive me citando em seus tuítes, colocando palavras na minha boca. Achei um pouco demais, pra falar a Verdade. Foi quando eu resolvi dar um basta nisso. De perfis fake, já bastam os da Clarice Lispector. Sim, a Verdade sempre aparece. E foi o que fiz! Tanto que estou estreando o Verdade Nua, um talk show de Verdade. Ou seja, meu! E tem mais: não terei convidados, pois quem vai falar aqui sou eu. Chegou a hora da Verdade! 

Para apresentar o Verdade Nua, estou vestida a caráter. O que me fez ganhar o desafeto do estilista da emissora. Aqui no programa não teremos merchandising da Colcci. Pois é importante que eu me apresente assim, nua e crua. Usando apenas um piercing feito de corrente de navio no clitóris. Sim, porque a verdade dói. Se não doesse, seria mentira. E aqui não terá espaço para a concorrência. Ela que leve suas pernas curtas para um show de stand up comedy qualquer.

O Verdade Nua funciona assim: mande sua cartinha, e-mail, whatsapp ou mensagem telepática. Aqui todas as questões serão respondidas comigo, a Verdade verdadeira. Nada dessas verdades de livro de cabeceira. Gente, por favor, fábulas levadas ao pé da letra não são de Verdade. Porque eu sou libertadora. E divertida! Sim, toda brincadeira tem um fundo de Verdade!  

Para que não fiquemos muito dispersos na conversa, cada episódio do Verdade Nua será temático. E para começar a temporada, a produção escolheu o tema Brasil e a Copa. Afinal, vai ter Copa? Não vai ter Copa? Olha... Quer saber a Verdade? A Verdade é que isso não importa, então parem de perguntar sobre essa partida de pelada superfaturada. Está achando ruim? Então dê de presente um livro, ao invés de uma bola, para o seu filho. Vamos à primeira mensagem!

Temos aqui a perguntinha do Angustiado Paulista. “Dizem que o Brasil é o país do futebol e, com a chegada da Copa, teremos uma grande celebração. Eu sou brasileiro, mas não gosto de futebol e não vejo a hora da Copa passar. Isso é normal?”. Olha, Angustiado, a bem da Verdade (no caso, o meu próprio bem), você não gosta de futebol porque não é brasileiro. O que aconteceu foi que sua mãe, numa fase mochileira riponga de sua vida, achou você numa lata de lixo em Mumbai e o trouxe pra ser criado no Brasil. Que futebol, que nada, mané! Confesse que você enruste uma vontade louca de jogar um kho kho, um badminton. Aposto que sonha toda noite com o elefantinho de quatro braços. São suas raízes indianas querendo aflorar! Coloque a velha na parede e você ficará sabendo de toda a Verdade. E deixe o futebol de lado sem medo de ser feliz!

A próxima mensagem é da Neurótica Curitibana. “Todo mundo fala que somos um país de atrasados. Chegamos atrasado pra tudo. Mas eu sou brasileira e sou bastante pontual. Isso é um problema?” Neurinha, meu amor. Como vimos anteriormente, o Verdade está no passado obscuro de sua mãe. Você não é brasileira. Pelo menos, não 100%. Quando jovem, sua mãe foi passar férias em Varginha, onde foi abduzida por extraterrestres e sumiu por três semanas. Voltou grávida, vítima de experimentos abusivos de incubação. Nove meses depois, pontualmente, você nasceu. Essa mania de pontualidade que você tem são traços de sua herança paterna, de uma raça alienígena oriunda da galáxia de Andrômeda que evoluiu com base na contagem exata do tempo. Neste caso, nem adianta interrogar a sua mãe. Ela sofre de amnésia pós-traumática e não se lembrará dos fatos ocorridos. Aproveite sua pontualidade e marque uma reunião com o Spielberg, venda sua história para o cinema e fique rica.

E pra finalizar temos a pergunta de Esperançoso Mineiro. “É verdade que, se o Brasil ganhar a Copa, minha vida vai melhorar?”. Olha, criança, nem adianta procurar a sua mãe pra resolver esta charada. A resposta pra isso está no saca-rolhas mesmo. Reza a lenda que os franceses e italianos gozam de enorme prestígio entre os entendidos, mas eu sou apaixonada pelos chilenos. Malbec, Carménère, Merlot, tanto faz... A casta da uva fica por sua conta. Contanto que encha a cara! Afinal, in vino veritas!

E ficamos por aqui com a primeira edição do Verdade Nua. Espero que tenham gostado. Não percam o próximo programa que, Verdade seja dita, estará uma loucura. Até logo e lembrem-se: melhor não acreditar em tudo o que lhe dizem! Não adianta ficar por dentro, porque a Verdade está lá fora!

segunda-feira, 31 de março de 2014

Eu quero morrer

Eu quero morrer aos 101 anos. E ter vivido o centenário de minha vida a plenos pulmões. Com toda a vitalidade e lucidez de fazer inveja a qualquer jovem de vinte e cinco. Porque algum nerd capitalista vai criar, em algum instante, uma supervitamina que transforma radicais livres em lactobacilos vivos mutantes. Com o ganho de sobrevida, acabarei viajando pelo mundo e conhecendo todos os países do globo, sofrendo uma verdadeira overdose de cultura. Ah, e com os joelhos em dia! Pois vou sair para dançar em cada um destes lugares, o suficiente para reconhecer as milhares de músicas que pesquisei e carreguei em meu repertório pessoal ao longo dos anos. Serei surpreendido com aquela sensação incrível de “uau, eu amo este som” muitas e muitas e muitas noites. Colecionarei ressaquinhas cúmplices, amarei pessoas relevantes. Ou amar ressacas relevantes e colecionar pessoinhas cúmplices, o que também está valendo. E, no dia do meu centésimo primeiro aniversário, por uma prerrogativa mercadológica, a obsolescência programada dos lactobacilos mutantes vai expirar. E simplesmente apago.

Eu quero morrer aos 56 anos. Juntamente com o grande colapso da civilização. O fundamentalismo religioso não tardará para alcançar o poder global e instituirá o sexo para fins de procriação como lei marcial. E a humanidade vai procriar. Ô, se vai! Chegaremos ao ano em que a explosão demográfica atingirá seu limite possível, com quinze bilhões de humanos famintos ao redor do mundo. Neste momento, os recursos naturais estarão comprometidos e quase exauridos. Por onde passo, encontro um rastro de guerra, fome, dor e desespero. Tomado por um sentimento de derrota, chego à conclusão que já vivi os melhores anos da minha vida e resolvo dar fim à minha jornada, visto que prolongá-la não parecerá uma opção sensata. Imbuído de um senso deturpado de altruísmo, entendo que, assim, não estarei tirando o escasso alimento da boca de uma criança faminta. Competir por comida é desumano, não quero fazer parte deste jogo. Morro no mar, levado pelas ondas.

Eu quero morrer aos 83 anos. Porque, de certa forma, já não estarei mais tecnicamente vivo mesmo. O meu corpo se encontrará no último estágio do colapso. Deixarei assinado, previamente, ainda em lucidez, um termo determinando os procedimentos da minha eutanásia futura. Quando chegar o momento fatídico, não estarei mais consciente, devido ao coma induzido que me privará de todo o sofrimento acarretado pelas complicações em decorrência do mau funcionamento dos meus órgãos vitais. Sim, corpos humanos são como melancias esquecidas na geladeira: apodrecem. Pneumonia crônica, insuficiência cardíaca, Alzheimer e uma pequena coleção de falências críticas pulverizadas. Resultado do acúmulo de somatizações em decorrência de toda ansiedade e depressão que a vida me proporcionou. Para livrar familiares deste fardo, ficou estipulado a data e a hora de desligar os aparelhos.

Eu quero morrer aos 47 anos. No meio de uma trepada homérica! Será o melhor sexo de toda a minha vida. Quando eu pensei que já tinha experimentado todo o êxtase que a troca de fluídos corporais poderia proporcionar, eis que sou surpreendido com a combinação perfeita. Conheço a pessoa certa! O velho clichê do lance de química: nitroglicerina, fulminato de mercúrio, trinitrotolueno e muita testosterona. Tudo misturado numa grande explosão sensorial. Com direito a recursos de literatura erótica barata que falam de respiração entrecortada, beijos sôfregos e abraços sufocantes. A noite segue neste ritmo como se não houvesse amanhã. E não haverá. O começo do fim se dará por um movimento desajeitado que terminará em cãibra na panturrilha.  O espasmo subirá pela coxa e atingirá o peito num ataque cardíaco fulminante. A vida começa aos quarenta. E também termina. Morrerei com um sorriso bobo na cara.

Eu quero morrer aos 65 anos. Por falta de respostas. Quando finalmente resolvo experimentar ayahuasca para encontrar alguma. Depois de todas as tentativas frustradas de atingir a plenitude do autoconhecimento pelo viés racional, resolvo apelar para o chá alucinógeno. Alguns goles e sou tomado por uma lisergia que me faz mergulhar fundo no meu universo particular. Um lugar infinitamente mais vasto que o próprio universo conhecido. Não há como descrever tudo o que presencio nesta viagem. A linguagem humana é limitada demais para isso. Estupefato com tantos fenômenos cósmicos que guardei dentro de mim a vida inteira, me perco nesta imensidão irrestrita e nunca mais acho o caminho de volta. Meu corpo é dado como morto. Mas, na verdade, eu finalmente estou de volta ao lugar ao qual pertenço. Cem por cento íntegro e dono de mim.

Eu quero morrer no último instante do que se entende por existência. A qualquer momento esbarrarei numa milagrosa fonte da juventude eterna e, assim, vou adquirir imortalidade. Para surpresa geral, permanecerei jovem enquanto todos envelhecem. Velarei a morte de todas as pessoas que amo. E mais algumas. Na verdade, de todas. Verei o fim da civilização humana num hecatombe nuclear, a ascensão das baratas, o fim da civilização ortóptera num hecatombe quântico e, na sequência, o fim do mundo. Ficarei sozinho à deriva num planeta estéril, esperando o colapso do sistema solar, da Via Láctea e, então, do Universo. Estarei lá no ocaso do último átomo e serei levado junto para o nada. Mas, até este ponto, por conta de uma eternidade em vida, já terei perdido o senso de identidade que marcou os primeiros anos da minha vida. E não sentirei mais saudade, culpa ou solidão. Sequer terei memória. Serei apenas um observador neutro do fim dos tempos.

Eu não sei se quero saber quando vou morrer.

Eu quero morrer agora.

quarta-feira, 12 de fevereiro de 2014

Papai, mamãe e cataventos

Você conhece a suástica? É aquela cruz que parece um catavento. Bonitinha até. Adoraria tê-la criado. Só que a autoria não é minha. E nem tem como saber muito bem de quem foi. Pois ela já era utilizada por budistas, hindus, astecas e uma porrada de povinhos mais antigos que Adão e Eva. Coisa de bem lá atrás mesmo! Pergunte a qualquer bom arqueólogo e ele irá confirmar. Ou vá na Wikipedia, mais fácil. Ela é um bom exemplo para ilustrar que a arte é tão antiga quanto o homem. 

É também conhecida como cruz gamada e representava um monte de coisas bacanas como felicidade e boa sorte. Tipo um trevo de quatro folhas de nossos tatatatatatatatatatatataravós (desculpa, não sei quantos “tatás” preciso escrever para chegar ao berço da civilização). A suástica desenha tão bem e significa tantas coisas boas que eu até a tatuaria no meu corpo. Se não fosse por um único porém: um rapaz chamado Adolf Hitler chegou antes de mim e a tatuou na história da humanidade. 

Por causa deste notório austríaco, a suástica hoje representa o que há de pior no ser humano. Tornou-se um símbolo abominável e evoca a grande atrocidade que foi o nazismo. Logo, não sugiro estampá-la na roupa. Sequer no corpo. E não adianta remeter à ancestralidade do cataventinho conceitual que não vai rolar, meu bem! Você pode até ter o bigodinho do genocida desenhado na sua periquita, mas a suástica pode esquecer! Melhor tatuar um asterisco e torcer para que nenhum megalomaníaco o use como logotipo no futuro. 

Pois é assim que funciona esse lance muito doido chamado cultura: símbolos e ideias são reféns de quem os propagam. E estarão à mercê das ações destes mesmos indivíduos. Logo, um desenho que outrora representava tantas coisas positivas, pode se tornar uma marca digna de condenação. Assim foi com a suástica. E assim será com a família. 

Você conhece a família? É aquela instituição tradicional que simboliza todo o amor, moral e bons costumes que a civilização tem a oferecer. Deve ser tão antiga quanto a arte e o homem. Também remete à proteção e legado. Não é incrível? Mas, de repente, você me interrompe para a pergunta que não quer calar: o que a suástica tem a ver com família? Ao que eu respondo para calar a pergunta: tem muita coisa a ver! 

Atualmente o que é a família senão um símbolo que procura evocar toda a sorte de valores sólidos e respeitáveis? Isso mesmo! Estou falando daquele monte de bonequinhos de palitinho horrorosos enfileirados lado a lado na traseira de automóveis que, além de tudo, informa o sequestrador com quantas crianças ele pode fechar negócio. Mas o que vale é a intenção do desenho, não é?

Família é um tema universal. Sempre tem alguém que coloca a família em primeiro lugar. Ou que sente saudade da família. Que deve tudo a ela. Ou, inclusive, que não se dá muito bem com a parentada e, por isso mesmo, vive arrastando corrente.

Ou pelo menos vivia.  

A família está na corda bamba. Junto com a moral e os bons costumes, ela está no paredão deste imenso reality show que é o mundo. Algumas pessoas que conseguiram chamar a atenção pelos motivos errados, tipo o serelepe Adolf, estão querendo fazer dos valores familiares uma nova tatuagem na história da humanidade. E novamente o desenho vai sair borrado.  

A patotinha fundamentalista dos Felicianos, Bolsonaros, Sônias e companhia limitada (limitada, no caso, ao seu próprio poder aquisitivo), está cagando no maiô branco do retrocesso. Um belo dia, acordaram e tiveram a brilhante ideia de anunciar que são os representantes oficiais da família. Mas, peraí? A família de quem esse pessoal representa? Além da própria, é claro. 

A família é a nova suástica. Um ícone que pretendia remeter a coisas boas até que oportunistas de plantão resolveram usá-lo para fins de campanha política. E é por isso que as próximas gerações, tal e qual filme de ficção científica, vão acabar se reproduzindo em laboratório de forma fria e sistemática. Porque, no futuro, a família será uma ideia pejorativa demais. Tipo um palavrão. Rapaz de família será o novo filho da puta! Esta será a (falta de) sorte de um símbolo sequestrado por meia dúzia de equivocados que semearam a violência e o preconceito para alcançar o poder. Tudo em nome da família. 

A boa notícia é que o futuro ainda não está escrito. Então não espere o Schwarzenegger aparecer, assim de repente, na sua sala e falar “hasta La vista, baby”. 

A cruz gamada já era. Está morta e enterrada junto com Hitler. E a família? Acredito que ainda está em tempo de resgatá-la da sarjeta. Ou vamos deixar qualquer um condenar mais um belo catavento antes que seja tarde demais? Cataventos não foram feitos para serem enterrados. Mas sim para rodarem ao sabor do vento.

quinta-feira, 6 de fevereiro de 2014

Morri.

Tem gente que morre de medo de avião, imaginando um desastre aéreo. Mas se já morreu de medo, não estará vivo para a queda. Outros preferem morrer dormindo, para não se fazerem presentes na ocasião do óbito (morri e não me avisaram?). 

Há os que desejam uma morte lenta e dolorosa para seus desafetos. E para os afetos, que nunca morram, na ingenuidade de desconhecer que a vida eterna é um grande suplício. Tem gente marcada para morrer. Ou que morre, assim, de repente. E ainda aqueles que vão embora aos poucos. Morrem para descansar. 

O seguro morreu de velho e a curiosidade matou o gato. Dá pra morrer de susto, de calor ou frio. E os ultrajados morrem e não veem tudo. Gulosos que morrem de fome. Recalcados que morrem de inveja. E luxuriosos que morrem de vontade. O pecado é mortal. Mas só a virtude faz morrer de tédio.

Tenho esperança em morrer de rir. Todo dia. Mas minha causa mortis já está decretada desde agora: morrerei de nostalgia. Uma overdose de saudosismo.