segunda-feira, 31 de março de 2014

Eu quero morrer

Eu quero morrer aos 101 anos. E ter vivido o centenário de minha vida a plenos pulmões. Com toda a vitalidade e lucidez de fazer inveja a qualquer jovem de vinte e cinco. Porque algum nerd capitalista vai criar, em algum instante, uma supervitamina que transforma radicais livres em lactobacilos vivos mutantes. Com o ganho de sobrevida, acabarei viajando pelo mundo e conhecendo todos os países do globo, sofrendo uma verdadeira overdose de cultura. Ah, e com os joelhos em dia! Pois vou sair para dançar em cada um destes lugares, o suficiente para reconhecer as milhares de músicas que pesquisei e carreguei em meu repertório pessoal ao longo dos anos. Serei surpreendido com aquela sensação incrível de “uau, eu amo este som” muitas e muitas e muitas noites. Colecionarei ressaquinhas cúmplices, amarei pessoas relevantes. Ou amar ressacas relevantes e colecionar pessoinhas cúmplices, o que também está valendo. E, no dia do meu centésimo primeiro aniversário, por uma prerrogativa mercadológica, a obsolescência programada dos lactobacilos mutantes vai expirar. E simplesmente apago.

Eu quero morrer aos 56 anos. Juntamente com o grande colapso da civilização. O fundamentalismo religioso não tardará para alcançar o poder global e instituirá o sexo para fins de procriação como lei marcial. E a humanidade vai procriar. Ô, se vai! Chegaremos ao ano em que a explosão demográfica atingirá seu limite possível, com quinze bilhões de humanos famintos ao redor do mundo. Neste momento, os recursos naturais estarão comprometidos e quase exauridos. Por onde passo, encontro um rastro de guerra, fome, dor e desespero. Tomado por um sentimento de derrota, chego à conclusão que já vivi os melhores anos da minha vida e resolvo dar fim à minha jornada, visto que prolongá-la não parecerá uma opção sensata. Imbuído de um senso deturpado de altruísmo, entendo que, assim, não estarei tirando o escasso alimento da boca de uma criança faminta. Competir por comida é desumano, não quero fazer parte deste jogo. Morro no mar, levado pelas ondas.

Eu quero morrer aos 83 anos. Porque, de certa forma, já não estarei mais tecnicamente vivo mesmo. O meu corpo se encontrará no último estágio do colapso. Deixarei assinado, previamente, ainda em lucidez, um termo determinando os procedimentos da minha eutanásia futura. Quando chegar o momento fatídico, não estarei mais consciente, devido ao coma induzido que me privará de todo o sofrimento acarretado pelas complicações em decorrência do mau funcionamento dos meus órgãos vitais. Sim, corpos humanos são como melancias esquecidas na geladeira: apodrecem. Pneumonia crônica, insuficiência cardíaca, Alzheimer e uma pequena coleção de falências críticas pulverizadas. Resultado do acúmulo de somatizações em decorrência de toda ansiedade e depressão que a vida me proporcionou. Para livrar familiares deste fardo, ficou estipulado a data e a hora de desligar os aparelhos.

Eu quero morrer aos 47 anos. No meio de uma trepada homérica! Será o melhor sexo de toda a minha vida. Quando eu pensei que já tinha experimentado todo o êxtase que a troca de fluídos corporais poderia proporcionar, eis que sou surpreendido com a combinação perfeita. Conheço a pessoa certa! O velho clichê do lance de química: nitroglicerina, fulminato de mercúrio, trinitrotolueno e muita testosterona. Tudo misturado numa grande explosão sensorial. Com direito a recursos de literatura erótica barata que falam de respiração entrecortada, beijos sôfregos e abraços sufocantes. A noite segue neste ritmo como se não houvesse amanhã. E não haverá. O começo do fim se dará por um movimento desajeitado que terminará em cãibra na panturrilha.  O espasmo subirá pela coxa e atingirá o peito num ataque cardíaco fulminante. A vida começa aos quarenta. E também termina. Morrerei com um sorriso bobo na cara.

Eu quero morrer aos 65 anos. Por falta de respostas. Quando finalmente resolvo experimentar ayahuasca para encontrar alguma. Depois de todas as tentativas frustradas de atingir a plenitude do autoconhecimento pelo viés racional, resolvo apelar para o chá alucinógeno. Alguns goles e sou tomado por uma lisergia que me faz mergulhar fundo no meu universo particular. Um lugar infinitamente mais vasto que o próprio universo conhecido. Não há como descrever tudo o que presencio nesta viagem. A linguagem humana é limitada demais para isso. Estupefato com tantos fenômenos cósmicos que guardei dentro de mim a vida inteira, me perco nesta imensidão irrestrita e nunca mais acho o caminho de volta. Meu corpo é dado como morto. Mas, na verdade, eu finalmente estou de volta ao lugar ao qual pertenço. Cem por cento íntegro e dono de mim.

Eu quero morrer no último instante do que se entende por existência. A qualquer momento esbarrarei numa milagrosa fonte da juventude eterna e, assim, vou adquirir imortalidade. Para surpresa geral, permanecerei jovem enquanto todos envelhecem. Velarei a morte de todas as pessoas que amo. E mais algumas. Na verdade, de todas. Verei o fim da civilização humana num hecatombe nuclear, a ascensão das baratas, o fim da civilização ortóptera num hecatombe quântico e, na sequência, o fim do mundo. Ficarei sozinho à deriva num planeta estéril, esperando o colapso do sistema solar, da Via Láctea e, então, do Universo. Estarei lá no ocaso do último átomo e serei levado junto para o nada. Mas, até este ponto, por conta de uma eternidade em vida, já terei perdido o senso de identidade que marcou os primeiros anos da minha vida. E não sentirei mais saudade, culpa ou solidão. Sequer terei memória. Serei apenas um observador neutro do fim dos tempos.

Eu não sei se quero saber quando vou morrer.

Eu quero morrer agora.

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