Eu quero
morrer aos 101 anos. E ter vivido o centenário de minha vida a plenos pulmões.
Com toda a vitalidade e lucidez de fazer inveja a qualquer jovem de
vinte e cinco. Porque algum nerd capitalista vai criar, em algum instante, uma
supervitamina que transforma radicais livres em lactobacilos vivos mutantes.
Com o ganho de sobrevida, acabarei viajando pelo mundo e conhecendo todos os
países do globo, sofrendo uma verdadeira overdose de cultura. Ah, e com os
joelhos em dia! Pois vou sair para dançar em cada um destes lugares, o
suficiente para reconhecer as milhares de músicas que pesquisei e carreguei em
meu repertório pessoal ao longo dos anos. Serei surpreendido com aquela
sensação incrível de “uau, eu amo este som” muitas e muitas e muitas noites.
Colecionarei ressaquinhas cúmplices, amarei pessoas relevantes. Ou amar
ressacas relevantes e colecionar pessoinhas cúmplices, o que também está
valendo. E, no dia do meu centésimo primeiro aniversário, por uma prerrogativa
mercadológica, a obsolescência programada dos lactobacilos mutantes vai
expirar. E simplesmente apago.
Eu quero
morrer aos 56 anos. Juntamente com o grande colapso da civilização. O
fundamentalismo religioso não tardará para alcançar o poder global e instituirá
o sexo para fins de procriação como lei marcial. E a humanidade vai procriar.
Ô, se vai! Chegaremos ao ano em que a explosão demográfica atingirá seu limite
possível, com quinze bilhões de humanos famintos ao redor do mundo. Neste momento,
os recursos naturais estarão comprometidos e quase exauridos. Por onde passo,
encontro um rastro de guerra, fome, dor e desespero. Tomado por um sentimento
de derrota, chego à conclusão que já vivi os melhores anos da minha vida e
resolvo dar fim à minha jornada, visto que prolongá-la não parecerá uma opção
sensata. Imbuído de um senso deturpado de altruísmo, entendo que, assim, não
estarei tirando o escasso alimento da boca de uma criança faminta. Competir por
comida é desumano, não quero fazer parte deste jogo. Morro no mar, levado pelas
ondas.
Eu quero
morrer aos 83 anos. Porque, de certa forma, já não estarei mais tecnicamente
vivo mesmo. O meu corpo se encontrará no último estágio do colapso. Deixarei
assinado, previamente, ainda em lucidez, um termo determinando os procedimentos
da minha eutanásia futura. Quando chegar o momento fatídico, não estarei mais
consciente, devido ao coma induzido que me privará de todo o sofrimento
acarretado pelas complicações em decorrência do mau funcionamento dos meus
órgãos vitais. Sim, corpos humanos são como melancias esquecidas na geladeira:
apodrecem. Pneumonia crônica, insuficiência cardíaca, Alzheimer e uma pequena
coleção de falências críticas pulverizadas. Resultado do acúmulo de somatizações
em decorrência de toda ansiedade e depressão que a vida me proporcionou. Para
livrar familiares deste fardo, ficou estipulado a data e a hora de desligar os
aparelhos.
Eu quero
morrer aos 47 anos. No meio de uma trepada homérica! Será o melhor sexo de toda
a minha vida. Quando eu pensei que já tinha experimentado todo o êxtase que a
troca de fluídos corporais poderia proporcionar, eis que sou surpreendido com a
combinação perfeita. Conheço a pessoa certa! O velho clichê do lance de
química: nitroglicerina, fulminato de mercúrio, trinitrotolueno e muita
testosterona. Tudo misturado numa grande explosão sensorial. Com direito a
recursos de literatura erótica barata que falam de respiração entrecortada,
beijos sôfregos e abraços sufocantes. A noite segue neste ritmo como se não
houvesse amanhã. E não haverá. O começo do fim se dará por um movimento
desajeitado que terminará em cãibra na panturrilha. O espasmo subirá pela coxa e atingirá o peito
num ataque cardíaco fulminante. A vida começa aos quarenta. E também termina.
Morrerei com um sorriso bobo na cara.
Eu quero
morrer aos 65 anos. Por falta de respostas. Quando finalmente resolvo
experimentar ayahuasca para encontrar alguma. Depois de todas as tentativas
frustradas de atingir a plenitude do autoconhecimento pelo viés racional,
resolvo apelar para o chá alucinógeno. Alguns goles e sou tomado por uma
lisergia que me faz mergulhar fundo no meu universo particular. Um lugar
infinitamente mais vasto que o próprio universo conhecido. Não há como
descrever tudo o que presencio nesta viagem. A linguagem humana é limitada
demais para isso. Estupefato com tantos fenômenos cósmicos que guardei dentro
de mim a vida inteira, me perco nesta imensidão irrestrita e nunca mais acho o
caminho de volta. Meu corpo é dado como morto. Mas, na verdade, eu finalmente
estou de volta ao lugar ao qual pertenço. Cem por cento íntegro e dono de mim.
Eu quero
morrer no último instante do que se entende por existência. A qualquer momento
esbarrarei numa milagrosa fonte da juventude eterna e, assim, vou adquirir
imortalidade. Para surpresa geral, permanecerei jovem enquanto todos
envelhecem. Velarei a morte de todas as pessoas que amo. E mais algumas. Na
verdade, de todas. Verei o fim da civilização humana num hecatombe nuclear, a
ascensão das baratas, o fim da civilização ortóptera num hecatombe quântico e,
na sequência, o fim do mundo. Ficarei sozinho à deriva num planeta estéril,
esperando o colapso do sistema solar, da Via Láctea e, então, do Universo.
Estarei lá no ocaso do último átomo e serei levado junto para o nada. Mas, até
este ponto, por conta de uma eternidade em vida, já terei perdido o senso de
identidade que marcou os primeiros anos da minha vida. E não sentirei mais
saudade, culpa ou solidão. Sequer terei memória. Serei apenas um observador
neutro do fim dos tempos.
Eu não sei
se quero saber quando vou morrer.
Eu quero
morrer agora.
segunda-feira, 31 de março de 2014
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