ASSÉDIO ESPIRITUAL: O CRIME QUE NINGUÉM OUSA CONDENAR
(ou como estou lidando com a mais absurda das propostas)
Por Eliandro Ramos
(ou como estou lidando com a mais absurda das propostas)
Por Eliandro Ramos
Espiritualidade é um conceito meio borrado. Geralmente é
retratada como algum tipo de devoção a certas alegorias culturais. Jesus,
Iemanjá, Afrodite, Crianças Índigo, Beatles, Bóson de Higgs. Você nasce e se vê
obrigado a respeitar o que parece ser uma cartilha incontestável de
transcendência e expiação.
Acontece que espiritualidade não se resume a isso.
Inclusive, vai muito além. Graças a uma coisa chamada evolução, o ser humano
não simplesmente existe. Ele sabe que existe. E, no que vai vivendo, percebe que
sua existência vai acabar. Morte, a derradeira certeza. E essa noção de
finitude é avassaladora. Então vem a
pergunta que não quer calar: como conviver com a ideia de que, uma hora,
kaputz?
Isso é espiritualidade.
Espiritualizar-se consiste em se armar das perguntas certas
para sair em busca das respostas, mesmo que, muito provavelmente, nunca vá
alcançá-las. É escolher um caminho. Importante: o seu próprio caminho. Uma
jornada pessoal. Aquilo que muita gente bacana fala sobre autoconhecimento e a
galera fica olhando com cara de elevador sem entender absolutamente nada do que
se está sendo dito.
Não é simples se espiritualizar.
“Ó homem, conhece-te a ti mesmo e conhecerás os deuses e
o universo.” A inscrição no Oráculo de Delfos meio que prepara para a
encrenca: para se “dar conta”, para se redimensionar dentro do eterno e do
infinito, o entendimento da própria insignificância pode ser uma experiência
desoladora. E cada um se vira do jeito que pode para abraçar esta percepção.
Passa a vida estudando todos os grandes pensadores. Passa a vida viajando pelos
quatro cantos de um mundo esférico sem canto nenhum. Passa a vida curtindo
adoidado. Passa a vida meditando. Passa a vida consultando previsões esotéricas.
Passa a vida dedicando-se ao pudor porque existem barbudos morando em nuvens
que estão vendo tudo o que se faz. Passa a vida rezando. Passa a vida
observando as estrelas em noites de céu limpo. Passa a vida enlouquecendo pra
encontrar sentido. Sim, porque a vida passa.
Cada um tem o seu jeito de buscar as respostas imbuscáveis. Não
é o que se diz? A vida é o caminho, não a chegada. E, assim, cada um se joga na
vida, construindo sua história, completando seu próprio álbum de referências e
tirando suas próprias conclusões.
Parece lindo, mas não é uma tarefa fácil.
Estar à deriva e experimentar um sentimento incômodo de
solidão perante a imensidão imensurável de tudo, vamos combinar, dá um
friozinho não muito legal na barriga. E uma galera muito esperta, imbuída do
espírito capitalista, percebeu uma oportunidade de ouro nesta história. Criaram
kits personalizados de respostas para existência. Imagine você quanta gente
perdida por aí que não venderia a mãe para conseguir “respostas de microondas” para
seguir com sua vidinha sem precisar surtar com busca de sentido e outras
bobagens. A coisa virou um sucesso de vendas!
Só que o ser humano tem esta coisa de ego que é mais ou
menos como o apêndice: só serve pra incomodar. O perdido se joga na
transcendência fast food e, lá no fundo, percebe que não preencheu seu estômago
existencial. E o que ele faz? Reconhece que fez merda? Desiste da escolha? Não
dá! Existe uma coisa chamada orgulho, efeito colateral do ego. Vai insistir que
as respostas de microondas são incríveis. E não vai sossegar enquanto não
convencer o maior número possível de pessoas que suas escolhas patéticas são perfeitas
para todo mundo. É quando a espiritualidade vira culto. Vira religião. Vira
gincana. Vira guerra. A prerrogativa é simples: quem não pensa igual a mim é
meu inimigo.
E a bela história de redenção vira filme de terror B.
Elaborei toda esta introdução para chegar num conceito que
estou querendo fazer vingar. O de ASSÉDIO ESPIRITUAL. Numa pesquisa preliminar,
percebi que a expressão já era usada por alguns para descrever obsessões ou
possessões. Mas, dentro do que eu imagino, ela cabe tão perfeitamente que não
vejo mal em fazer uma apropriação. Também já se fala em “assédio religioso”,
mas acho um pouco reducionista, levando o foco a um ou dois cultos hardcore que
existem apenas para transformar a vida de gente livre num inferno. “Assédio
espiritual” é um pouco mais amplo.
Imagine um bullying em doses homeopáticas. Uma pitada de
violência misturada numa sopa de calor humano e inclusão. O aliciador é uma
pessoa tão cheia de si, segura e confiante, iluminada e objetiva, que olha para
você de forma carismática e acolhedora. Se aproxima com um discurso cativante e
segue determinado a fazer a sua cabeça com um empuxo gravitacional inesgotável.
Há uma arrogância velada no discurso do assediador espiritual. Tudo o que ele
fala soa como “EU SEI O QUE É MELHOR PARA VOCÊ”. Mesmo sem saber. Porque (olha
só que coincidência!!!), para esta pessoa em questão, o que é melhor para os
outros é exatamente igual ao que melhor é para ela mesma.
Eu sei o que é melhor pra você.
E é por isso que estou insistindo no assédio espiritual, e
não no religioso. Porque esta influência constrangedora pode tomar tantas
nuances, que muitas vezes a gente não percebe o crime acontecendo. É mais fácil
se ultrajar com o ato explícito de violência, de alguém que diz “você é um lixo
por ser diferente”. Mas como condenar uma abordagem educada e positiva? “Você é
incrível, inteligente e com um grande potencial de sucesso, maaaas.... tem umas
coisinhas que podem ser melhoradas”. Afinal, a pessoa foi educada e simpática.
Como pode ser perigosa? É assim que se identifica um assediador espiritual.
Porque sua abordagem é positiva. Diferente do assédio moral, por exemplo, que coloca qualquer um pra baixo.
O assediador espiritual geralmente começa seu discurso com
“você só vai ser feliz se...”. Reparem nas conversas supostamente
despretensiosas que existem por aí. Você só vai ser feliz se aceitar deus no
seu coração. Você só vai ser feliz se perder dez quilos. Você só vai ser feliz
se alisar o cabelo. Você só vai ser feliz se casar e formar uma família. Você
só vai ser feliz se evitar geminianos com ascendente em escorpião. Você só vai
ser feliz se for igual a mim.
Sentiu o drama?
E por que de repente esta necessidade de falar desse assunto?
Passei por uma experiência muito constrangedora e achei
importante dividi-la com os amigos. Uma certa pessoa, a cerca de um ano, se
aproximou de mim e resolveu agarrar amizade. Frequentávamos a mesma academia e
ela me via pelos cantos, fazendo meu treino quietinho e sem muita
interatividade. Eu parecia uma presa fácil. A criatura era uma pessoa
articulada, carismática, divertida. Não vi nenhum mal em dar vazão a esta
aproximação. Entrei no clima. Passamos a frequentar as mesmas aulas de
ginástica, fui adicionando em suas redes sociais e no seu grupo de whatsapp. Ela,
sempre que podia, citava um curso de aprimoramento mental baseado em preceitos
científicos que fariam Niels Bohr se revirar no caixão. Tomei como uma bobagem
de autoajuda. Volta e meia eu era assediado com esta ladainha e, educadamente,
saía pela tangente. Mas a pessoa estava obstinada a levar o assunto adiante.
Até que, esta semana, na cabeça dela, se fez a oportunidade
de me sugerir uma terapia de conversão para heterossexualidade.
A abordagem foi calculadamente elogiosa. “Nossa, Eliandro,
como você é especial, inteligente.” A conversa começou a ficar estranha quando
ela disse “eu quero te dizer algo, mas você precisa que me autorizar primeiro”.
Muito estranho. Como vou autorizar algo que não faço a menor ideia do que seja?
E, então, no melhor estilo “eu sei o que é melhor para você” seguido do “você
só vai ser feliz se...”, a criatura desfilou uma série de desumanidades sobre “escolhas
de vida” de homossexuais, mas que isso era muito simples de reprogramar. O
primeiro impulso foi do mais puro ultraje, mas ainda segurei a onda um pouco,
como se achasse o debate possível, tentando desarmar suas teorias, assim, “de
boa”. Mas quanto mais eu rebatia, mais ela reafirmava sua lavagenzinha cerebral
de quinta categoria.
De repente, eu fiquei com raiva. Não da pessoa. Mas de mim,
que, na veemência de completar 40 anos, ainda me permito arroubos de
ingenuidade. De não perceber a aproximação de equivocados. Depois veio um certo
pânico. Me preparei tanto para lidar com violências explícitas, físicas e
verbais, que acabei baixando a guarda para as dissimuladas. Essa criatura tem vários
amigos gays, frequenta balada GLS. Ninguém poderia imaginar suas intenções, até
ela se sentir confortável para expô-las.
Dei um passo atrás. E ela percebeu que deu o bote na pessoa
errada. Me procurou com uma verborragia cacofônica tentando embaralhar minha
percepção com justificativas aleatórias. Saí de seu grupo e ela veio perguntar
o que havia acontecido (como se não soubesse). Eu disse que não conseguia compactuar
com a sua filosofia de vida. Ela, no melhor estilo controle de danos, veio com
tudo: “deixa eu te explicar esta raiva que você está sentindo para que você possa
entender tudo”. Eu ainda me dei o trabalho de replicar: “é justamente sobre
isso que estou falando, você quer explicar algo que está acontecendo dentro de
mim, algo que só eu posso explicar”. Ela seguiu incansável. Jogando todas as
fichas na veemência de ser desmascarada: “sobre aquele assunto, não era uma
opinião minha, não era sobre você, nada contra, é só um processo terapêutico”.
A essa altura já parei de responder. Em seguida, estava devidamente bloqueada.
Do meu ponto de vista pessoal, na minha jornada particular,
é uma experiência muito desagradável. Porque me coloca num holofote que oferece
uma exposição não muito bem-vinda. Agora vou ter que ir à academia, praticar meu
treino, correndo o risco de cruzar com esta maluca. Dos possíveis
constrangimentos, discussões. De explicar aos amigos em comum o que está
acontecendo. Confesso que cheguei a cogitar de dar um tempo da rotina de
exercícios. Mas, se eu fizesse isso, o maluco da história seria eu. Fico
imaginando quantas outras pessoas ela deva estar assediando que não tem tão
claro pra si um senso de autoconfiança. O que não é difícil. No impulso de ser
autêntico, nos revelamos inadequados. E ser inadequado não é gostoso, apesar de
ser importante para a tal jornada que falei no começo. Então vem uma raposa carismática
oferecendo adequação. Presa fácil é o que não falta.
Assédio espiritual deveria ser um crime tão grave quanto o
moral ou o sexual. Mas a nossa cultura nos programou para não bater de frente
com qualquer coisa que venha revestida numa embalagem de bom, belo e agradável.
Espero que, com este prolixo desabafo, eu tenha oferecido a alguns amigos a
oportunidade de refletir sobre o tema. E de, num futuro próximo, podermos nos
encontrar para debater seja sobre o que for de uma forma saudável e positiva.
Onde haja oportunidades iguais para se ouvir e falar de ambas as partes. E que
todos saiam disso maiores do que entraram. E não fracionados. Fragmentados.
Reprogramados.
Convido a todos a pensarem sobre o seu próprio caminho. Na
sua jornada. Com sua crença ou descrença. Sua religião ou ciência. Com seu
elogio ou crítica. E provar para o universo que a raça humana não é um desastre
completo.