sexta-feira, 20 de novembro de 2015

Assédio Espiritual



ASSÉDIO ESPIRITUAL: O CRIME QUE NINGUÉM OUSA CONDENAR
(ou como estou lidando com a mais absurda das propostas)
Por Eliandro Ramos

Espiritualidade é um conceito meio borrado. Geralmente é retratada como algum tipo de devoção a certas alegorias culturais. Jesus, Iemanjá, Afrodite, Crianças Índigo, Beatles, Bóson de Higgs. Você nasce e se vê obrigado a respeitar o que parece ser uma cartilha incontestável de transcendência e expiação.
Acontece que espiritualidade não se resume a isso. Inclusive, vai muito além. Graças a uma coisa chamada evolução, o ser humano não simplesmente existe. Ele sabe que existe. E, no que vai vivendo, percebe que sua existência vai acabar. Morte, a derradeira certeza. E essa noção de finitude é avassaladora.  Então vem a pergunta que não quer calar: como conviver com a ideia de que, uma hora, kaputz?
Isso é espiritualidade.
Espiritualizar-se consiste em se armar das perguntas certas para sair em busca das respostas, mesmo que, muito provavelmente, nunca vá alcançá-las. É escolher um caminho. Importante: o seu próprio caminho. Uma jornada pessoal. Aquilo que muita gente bacana fala sobre autoconhecimento e a galera fica olhando com cara de elevador sem entender absolutamente nada do que se está sendo dito.
Não é simples se espiritualizar.
“Ó homem, conhece-te a ti mesmo e conhecerás os deuses e o universo.” A inscrição no Oráculo de Delfos meio que prepara para a encrenca: para se “dar conta”, para se redimensionar dentro do eterno e do infinito, o entendimento da própria insignificância pode ser uma experiência desoladora. E cada um se vira do jeito que pode para abraçar esta percepção. Passa a vida estudando todos os grandes pensadores. Passa a vida viajando pelos quatro cantos de um mundo esférico sem canto nenhum. Passa a vida curtindo adoidado. Passa a vida meditando. Passa a vida consultando previsões esotéricas. Passa a vida dedicando-se ao pudor porque existem barbudos morando em nuvens que estão vendo tudo o que se faz. Passa a vida rezando. Passa a vida observando as estrelas em noites de céu limpo. Passa a vida enlouquecendo pra encontrar sentido. Sim, porque a vida passa.
Cada um tem o seu jeito de buscar as respostas imbuscáveis. Não é o que se diz? A vida é o caminho, não a chegada. E, assim, cada um se joga na vida, construindo sua história, completando seu próprio álbum de referências e tirando suas próprias conclusões.
Parece lindo, mas não é uma tarefa fácil.
Estar à deriva e experimentar um sentimento incômodo de solidão perante a imensidão imensurável de tudo, vamos combinar, dá um friozinho não muito legal na barriga. E uma galera muito esperta, imbuída do espírito capitalista, percebeu uma oportunidade de ouro nesta história. Criaram kits personalizados de respostas para existência. Imagine você quanta gente perdida por aí que não venderia a mãe para conseguir “respostas de microondas” para seguir com sua vidinha sem precisar surtar com busca de sentido e outras bobagens. A coisa virou um sucesso de vendas!
Só que o ser humano tem esta coisa de ego que é mais ou menos como o apêndice: só serve pra incomodar. O perdido se joga na transcendência fast food e, lá no fundo, percebe que não preencheu seu estômago existencial. E o que ele faz? Reconhece que fez merda? Desiste da escolha? Não dá! Existe uma coisa chamada orgulho, efeito colateral do ego. Vai insistir que as respostas de microondas são incríveis. E não vai sossegar enquanto não convencer o maior número possível de pessoas que suas escolhas patéticas são perfeitas para todo mundo. É quando a espiritualidade vira culto. Vira religião. Vira gincana. Vira guerra. A prerrogativa é simples: quem não pensa igual a mim é meu inimigo.
E a bela história de redenção vira filme de terror B.
Elaborei toda esta introdução para chegar num conceito que estou querendo fazer vingar. O de ASSÉDIO ESPIRITUAL. Numa pesquisa preliminar, percebi que a expressão já era usada por alguns para descrever obsessões ou possessões. Mas, dentro do que eu imagino, ela cabe tão perfeitamente que não vejo mal em fazer uma apropriação. Também já se fala em “assédio religioso”, mas acho um pouco reducionista, levando o foco a um ou dois cultos hardcore que existem apenas para transformar a vida de gente livre num inferno. “Assédio espiritual” é um pouco mais amplo.
Imagine um bullying em doses homeopáticas. Uma pitada de violência misturada numa sopa de calor humano e inclusão. O aliciador é uma pessoa tão cheia de si, segura e confiante, iluminada e objetiva, que olha para você de forma carismática e acolhedora. Se aproxima com um discurso cativante e segue determinado a fazer a sua cabeça com um empuxo gravitacional inesgotável. Há uma arrogância velada no discurso do assediador espiritual. Tudo o que ele fala soa como “EU SEI O QUE É MELHOR PARA VOCÊ”. Mesmo sem saber. Porque (olha só que coincidência!!!), para esta pessoa em questão, o que é melhor para os outros é exatamente igual ao que melhor é para ela mesma.
Eu sei o que é melhor pra você.
E é por isso que estou insistindo no assédio espiritual, e não no religioso. Porque esta influência constrangedora pode tomar tantas nuances, que muitas vezes a gente não percebe o crime acontecendo. É mais fácil se ultrajar com o ato explícito de violência, de alguém que diz “você é um lixo por ser diferente”. Mas como condenar uma abordagem educada e positiva? “Você é incrível, inteligente e com um grande potencial de sucesso, maaaas.... tem umas coisinhas que podem ser melhoradas”. Afinal, a pessoa foi educada e simpática. Como pode ser perigosa? É assim que se identifica um assediador espiritual. Porque sua abordagem é positiva. Diferente do assédio moral, por exemplo,  que coloca qualquer um pra baixo.
O assediador espiritual geralmente começa seu discurso com “você só vai ser feliz se...”. Reparem nas conversas supostamente despretensiosas que existem por aí. Você só vai ser feliz se aceitar deus no seu coração. Você só vai ser feliz se perder dez quilos. Você só vai ser feliz se alisar o cabelo. Você só vai ser feliz se casar e formar uma família. Você só vai ser feliz se evitar geminianos com ascendente em escorpião. Você só vai ser feliz se for igual a mim.
Sentiu o drama?
E por que de repente esta necessidade de falar desse assunto?
Passei por uma experiência muito constrangedora e achei importante dividi-la com os amigos. Uma certa pessoa, a cerca de um ano, se aproximou de mim e resolveu agarrar amizade. Frequentávamos a mesma academia e ela me via pelos cantos, fazendo meu treino quietinho e sem muita interatividade. Eu parecia uma presa fácil. A criatura era uma pessoa articulada, carismática, divertida. Não vi nenhum mal em dar vazão a esta aproximação. Entrei no clima. Passamos a frequentar as mesmas aulas de ginástica, fui adicionando em suas redes sociais e no seu grupo de whatsapp. Ela, sempre que podia, citava um curso de aprimoramento mental baseado em preceitos científicos que fariam Niels Bohr se revirar no caixão. Tomei como uma bobagem de autoajuda. Volta e meia eu era assediado com esta ladainha e, educadamente, saía pela tangente. Mas a pessoa estava obstinada a levar o assunto adiante.
Até que, esta semana, na cabeça dela, se fez a oportunidade de me sugerir uma terapia de conversão para heterossexualidade.
A abordagem foi calculadamente elogiosa. “Nossa, Eliandro, como você é especial, inteligente.” A conversa começou a ficar estranha quando ela disse “eu quero te dizer algo, mas você precisa que me autorizar primeiro”. Muito estranho. Como vou autorizar algo que não faço a menor ideia do que seja? E, então, no melhor estilo “eu sei o que é melhor para você” seguido do “você só vai ser feliz se...”, a criatura desfilou uma série de desumanidades sobre “escolhas de vida” de homossexuais, mas que isso era muito simples de reprogramar. O primeiro impulso foi do mais puro ultraje, mas ainda segurei a onda um pouco, como se achasse o debate possível, tentando desarmar suas teorias, assim, “de boa”. Mas quanto mais eu rebatia, mais ela reafirmava sua lavagenzinha cerebral de quinta categoria.
De repente, eu fiquei com raiva. Não da pessoa. Mas de mim, que, na veemência de completar 40 anos, ainda me permito arroubos de ingenuidade. De não perceber a aproximação de equivocados. Depois veio um certo pânico. Me preparei tanto para lidar com violências explícitas, físicas e verbais, que acabei baixando a guarda para as dissimuladas. Essa criatura tem vários amigos gays, frequenta balada GLS. Ninguém poderia imaginar suas intenções, até ela se sentir confortável para expô-las.
Dei um passo atrás. E ela percebeu que deu o bote na pessoa errada. Me procurou com uma verborragia cacofônica tentando embaralhar minha percepção com justificativas aleatórias. Saí de seu grupo e ela veio perguntar o que havia acontecido (como se não soubesse). Eu disse que não conseguia compactuar com a sua filosofia de vida. Ela, no melhor estilo controle de danos, veio com tudo: “deixa eu te explicar esta raiva que você está sentindo para que você possa entender tudo”. Eu ainda me dei o trabalho de replicar: “é justamente sobre isso que estou falando, você quer explicar algo que está acontecendo dentro de mim, algo que só eu posso explicar”. Ela seguiu incansável. Jogando todas as fichas na veemência de ser desmascarada: “sobre aquele assunto, não era uma opinião minha, não era sobre você, nada contra, é só um processo terapêutico”. A essa altura já parei de responder. Em seguida, estava devidamente bloqueada.
Do meu ponto de vista pessoal, na minha jornada particular, é uma experiência muito desagradável. Porque me coloca num holofote que oferece uma exposição não muito bem-vinda. Agora vou ter que ir à academia, praticar meu treino, correndo o risco de cruzar com esta maluca. Dos possíveis constrangimentos, discussões. De explicar aos amigos em comum o que está acontecendo. Confesso que cheguei a cogitar de dar um tempo da rotina de exercícios. Mas, se eu fizesse isso, o maluco da história seria eu. Fico imaginando quantas outras pessoas ela deva estar assediando que não tem tão claro pra si um senso de autoconfiança. O que não é difícil. No impulso de ser autêntico, nos revelamos inadequados. E ser inadequado não é gostoso, apesar de ser importante para a tal jornada que falei no começo. Então vem uma raposa carismática oferecendo adequação. Presa fácil é o que não falta.
Assédio espiritual deveria ser um crime tão grave quanto o moral ou o sexual. Mas a nossa cultura nos programou para não bater de frente com qualquer coisa que venha revestida numa embalagem de bom, belo e agradável. Espero que, com este prolixo desabafo, eu tenha oferecido a alguns amigos a oportunidade de refletir sobre o tema. E de, num futuro próximo, podermos nos encontrar para debater seja sobre o que for de uma forma saudável e positiva. Onde haja oportunidades iguais para se ouvir e falar de ambas as partes. E que todos saiam disso maiores do que entraram. E não fracionados. Fragmentados. Reprogramados.
Convido a todos a pensarem sobre o seu próprio caminho. Na sua jornada. Com sua crença ou descrença. Sua religião ou ciência. Com seu elogio ou crítica. E provar para o universo que a raça humana não é um desastre completo.

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