- Olá! Eu sou Uma Q. Walker e estamos aqui hoje no nosso programa
Uma Para Te Contar com esta entrevista exclusiva e inédita. Nossa convidada,
muito especial, todo mundo conhece, é uma grande notoriedade, mas sempre
procurou exercer o seu trabalho de forma discreta e sem muita exposição. Pela
primeira vez aqui, com vocês, a Morte. Boa tarde, Morte. Tudo bem com você?
- Tudo ótimo, Uma.
- Morte, você não morre tão cedo! Ah ah ah! Eu sempre quis dizer isso!
- Morri com esta...
- Não poderia começar esta entrevista de outra forma. Morro
(brincadeira!) de curiosidade de saber. Depois de atuar na surdina por tanto
tempo, por que dar uma entrevista agora?
- Então, Uma, os maias me contrataram para uma ação promocional do
calendário deles. Parece que temos um grande evento no final deste ano.
- A audiência brasileira agradece a preferência.
- Na verdade eu prefiro os mexicanos. Eles sabem me celebrar como
ninguém. Mas tudo bem, os brasileiros também moram no meu coração.
- É mesmo? Estou curiosa para saber por quê.
- A curiosidade matou o gato.
- Ah, ah, ah. Nossa, nossa, assim você me mata!
- Não precisa pedir duas vezes, Uma.
- Hãã... Acho que vou parar com as piadinhas e seguir com a entrevista.
- Esperto de sua parte.
- Como é viver na companhia de cadáveres, múmias, pedras e outras coisas
mortas?
- Deixe as pedras fora disso.
- Sério? Por quê?
- Porque as pedras não estão mortas. Elas são inanimadas. É outro
departamento.
- E qual a diferença?
- A diferença é que elas nunca foram vivas. Então eu nunca precisei
visitá-las. Entenda que eu sou parte de um processo maior que envolve a vida.
Eu existo porque a vida existe. Do contrário tudo seriam pedras.
- Que lindo isso que você disse! Posso postar no meu Facebook?
- Citando a fonte, tudo bem.
- Ah, legal! Então, dando continuidade ao nosso papo, o que você acha da
legalização do aborto? É um bom negócio para você?
- Sei lá. Tanto faz...
- Como assim “tanto faz”?
- Então, tanto faz. Esta pergunta
é tão reducionista.
- Reducionista?
- É verdade. Estão expondo este aspecto da minha atuação. Eu sou muito
mais ampla. Me faço presente na existência de vocês de muitas outras formas, em
vários outros momentos.
- Como assim?
- Me vinculam somente a aborto, assassinato, suicídio, ataque cardíaco, doença,
velhice... Como se a minha vida se resumisse a este tipo de festinha todo dia.
Nada disso. Estou nas pequenas coisas também. Estou na bandeja de bifes
cortados no freezer do mercado. No cacho de bananas que apodrece lentamente na
fruteira em cima da geladeira (todos preferem comer chocolate). Nos mosquitos
mortos com a raquete elétrica (amo sadomasô). Também estou nos fios de cabelo que
entopem o ralo da piscina. No esperma que escoou pelo ralo do chuveiro depois
da masturbação e não vai fecundar porra nenhuma. Até mesmo nas flores deste
arranjo que foram mutiladas e mergulhadas num vaso com água. Apenas para
enfeitar este estúdio. Elas estão aqui, morrendo lentamente. E vocês ainda
acham bonito! Não entendo por que justo o aborto é um aspecto tão importante
assim do meu trabalho que mereça uma atenção especial.
- Talvez porque seja um ato deliberado?
- Você disse “ato deliberado”? Como, por exemplo, a guerra? Vejamos, a guerra é um
ato deliberado que resulta em muitas mortes. Mas assim, muuuuuitas mortes!
Nossa, eu trabalho feito uma camela quando uma guerra é declarada. E não vejo
ninguém se mexendo para proibir a guerra. Arrisco dizer até que ela é
incentivada. Estou vendo aqui, a minha agenda esteve lotada nos últimos dez mil
anos.
- Você prefere não falar sobre aborto. É isso? Prefere evitar polêmica.
- Do meu ponto de vista, a polêmica não existe.
- Não?
- Não mesmo. É mais ou menos como a história da proibição da sacolinha
plástica no supermercado visando a questão ecológica. Num lugar abarrotado de
produtos que são, na sua grande esmagadora maioria, embalados por plástico, jogar
a culpa na sacolinha é tapar o sol com a peneira (de plástico).
- Peraí, não entendi. A sacolinha
não é a tal da inanimada? Ou ela morreu e eu não sabia?
- A questão é que a sacolinha não é nada. O aborto não é nada. São
apenas pautas que vocês cultivam para se distraírem enquanto eu não chego.
- Morte, você diz coisas lindas de morrer. Mas este programa passa às
16h e talvez a nossa audiência fique um tanto perdida. Dá para simplificar um
pouco?
- Entendi. Então vamos colocar assim: não tenho uma opinião sobre o
destino de um feto do qual eu não participei da concepção. Prefiro ter uma
opinião sobre meus filhos.
- Ah, você tem filhos?
- Tenho sim! São a minha razão de viver (com o perdão do trocadilho). Os
coloquei no mundo para dar continuidade ao meu trabalho. E eles têm feito isso
direitinho, sabia?
- E a gente conhece algum deles?
- Claaaaaro que conhece! Inclusive tem grande intimidade com a caçula! A
minha filhota mais nova é a Internet! Ela saiu igualzinha a mãe! Já matou a
ortografia, o cinema, o teatro, as lojas de disco, o sexo e a troca de afeto.
Eu não poderia estar mais orgulhosa!
- Gente, olha que incrível esta revelação! O nosso programa Uma Para te
Contar hoje está de matar!
- Pensei que tivesse parado com as piadinhas.
- Ah ah ah. Eu não resisto. A conversa está muito boa, mas o tempo está
acabando.
- Eu poderia jurar que esta fala é minha.
- Incrível o seu timing, Morte.
- Sim, sempre apareço na hora certa.
- Para finalizar, gostaria de deixar um recadinho para os seus fãs
brasileiros?
- Sim, claro! Brasileiros, parem de pensar na morte da bezerra. Variem o
tema. Pensem um pouco na morte do potro, do frango, sei lá... Podem pensar até
mesmo na morte da originalidade, do bom gosto, da autenticidade. Isso seria tão
mais produtivo para a breve vida de vocês. E quando nos encontrarmos, teremos
assunto, né?
- Espetacular. Gente, eu sou Uma Q. Walker e este foi mais um programa Uma
Para te Contar. Hoje entrevistamos a Morte. Obrigado, Morte, pela sua presença!
- De nada! Podemos ir embora agora?
- “Podemos”? Como assim?
- Ah, Uma, qualé...
Você acha mesmo que eu vim aqui só dar uma entrevista? Chegou a sua hora,
querida. Vamos nessa.
muuuito boa ... como sempre.Parabéns Mano
ResponderExcluiradorei!!!! quero fazer no palco...
ResponderExcluirSem palavras, muito bom! :)
ResponderExcluirExcelente!!!!!
ResponderExcluirEu faço questão de declarar publicamente: Sem dúvida, tu és um dos seres humanos mais brilhantes que eu já conheci nestes 48 anos de vida em sociedade...
ResponderExcluirEste texto é ma-ra-vi-lho-so. Quero montar. Já concedeste os direitos de montagem pra alguém?
Se, sim: Sniff, sniff
(se tu não quiseres nem ouvir falar em Grace Gianoukas associada a um texto teu..podes usar essa mesma resposta)
Se,não: eu venho por meio desta solicitar os direitos de montagemdeste texto genial.
Bravo, Eliandix!!Teus textos estão cada vez melhores..(ou melhor???)
Viu como é importante ser andarilho esquizofrenico....
Love and bubbles