domingo, 29 de abril de 2012

A vida da morte

- Olá! Eu sou Uma Q. Walker e estamos aqui hoje no nosso programa Uma Para Te Contar com esta entrevista exclusiva e inédita. Nossa convidada, muito especial, todo mundo conhece, é uma grande notoriedade, mas sempre procurou exercer o seu trabalho de forma discreta e sem muita exposição. Pela primeira vez aqui, com vocês, a Morte. Boa tarde, Morte. Tudo bem com você?
- Tudo ótimo, Uma.
- Morte, você não morre tão cedo! Ah ah ah! Eu sempre quis dizer isso!
- Morri com esta...
- Não poderia começar esta entrevista de outra forma. Morro (brincadeira!) de curiosidade de saber. Depois de atuar na surdina por tanto tempo, por que dar uma entrevista agora?
- Então, Uma, os maias me contrataram para uma ação promocional do calendário deles. Parece que temos um grande evento no final deste ano.
- A audiência brasileira agradece a preferência.
- Na verdade eu prefiro os mexicanos. Eles sabem me celebrar como ninguém. Mas tudo bem, os brasileiros também moram no meu coração.
- É mesmo? Estou curiosa para saber por quê.
- A curiosidade matou o gato.
- Ah, ah, ah. Nossa, nossa, assim você me mata!
- Não precisa pedir duas vezes, Uma.
- Hãã... Acho que vou parar com as piadinhas e seguir com a entrevista.
- Esperto de sua parte.
- Como é viver na companhia de cadáveres, múmias, pedras e outras coisas mortas?
- Deixe as pedras fora disso.
- Sério? Por quê?
- Porque as pedras não estão mortas. Elas são inanimadas. É outro departamento.
- E qual a diferença?
- A diferença é que elas nunca foram vivas. Então eu nunca precisei visitá-las. Entenda que eu sou parte de um processo maior que envolve a vida. Eu existo porque a vida existe. Do contrário tudo seriam pedras.
- Que lindo isso que você disse! Posso postar no meu Facebook?
- Citando a fonte, tudo bem.
- Ah, legal! Então, dando continuidade ao nosso papo, o que você acha da legalização do aborto? É um bom negócio para você?
- Sei lá. Tanto faz...
- Como assim “tanto faz”?
- Então, tanto faz.  Esta pergunta é tão reducionista.
- Reducionista?
- É verdade. Estão expondo este aspecto da minha atuação. Eu sou muito mais ampla. Me faço presente na existência de vocês de muitas outras formas, em vários outros momentos.
- Como assim?
- Me vinculam somente a aborto, assassinato, suicídio, ataque cardíaco, doença, velhice... Como se a minha vida se resumisse a este tipo de festinha todo dia. Nada disso. Estou nas pequenas coisas também. Estou na bandeja de bifes cortados no freezer do mercado. No cacho de bananas que apodrece lentamente na fruteira em cima da geladeira (todos preferem comer chocolate). Nos mosquitos mortos com a raquete elétrica (amo sadomasô). Também estou nos fios de cabelo que entopem o ralo da piscina. No esperma que escoou pelo ralo do chuveiro depois da masturbação e não vai fecundar porra nenhuma. Até mesmo nas flores deste arranjo que foram mutiladas e mergulhadas num vaso com água. Apenas para enfeitar este estúdio. Elas estão aqui, morrendo lentamente. E vocês ainda acham bonito! Não entendo por que justo o aborto é um aspecto tão importante assim do meu trabalho que mereça uma atenção especial.
- Talvez porque seja um ato deliberado?
- Você disse “ato deliberado”? Como, por exemplo, a guerra? Vejamos, a guerra é um ato deliberado que resulta em muitas mortes. Mas assim, muuuuuitas mortes! Nossa, eu trabalho feito uma camela quando uma guerra é declarada. E não vejo ninguém se mexendo para proibir a guerra. Arrisco dizer até que ela é incentivada. Estou vendo aqui, a minha agenda esteve lotada nos últimos dez mil anos.
- Você prefere não falar sobre aborto. É isso? Prefere evitar polêmica.
- Do meu ponto de vista, a polêmica não existe.
- Não?
- Não mesmo. É mais ou menos como a história da proibição da sacolinha plástica no supermercado visando a questão ecológica. Num lugar abarrotado de produtos que são, na sua grande esmagadora maioria, embalados por plástico, jogar a culpa na sacolinha é tapar o sol com a peneira (de plástico).
-  Peraí, não entendi. A sacolinha não é a tal da inanimada? Ou ela morreu e eu não sabia?
- A questão é que a sacolinha não é nada. O aborto não é nada. São apenas pautas que vocês cultivam para se distraírem enquanto eu não chego.
- Morte, você diz coisas lindas de morrer. Mas este programa passa às 16h e talvez a nossa audiência fique um tanto perdida. Dá para simplificar um pouco?
- Entendi. Então vamos colocar assim: não tenho uma opinião sobre o destino de um feto do qual eu não participei da concepção. Prefiro ter uma opinião sobre meus filhos.
- Ah, você tem filhos?
- Tenho sim! São a minha razão de viver (com o perdão do trocadilho). Os coloquei no mundo para dar continuidade ao meu trabalho. E eles têm feito isso direitinho, sabia?
- E a gente conhece algum deles?
- Claaaaaro que conhece! Inclusive tem grande intimidade com a caçula! A minha filhota mais nova é a Internet! Ela saiu igualzinha a mãe! Já matou a ortografia, o cinema, o teatro, as lojas de disco, o sexo e a troca de afeto. Eu não poderia estar mais orgulhosa!
- Gente, olha que incrível esta revelação! O nosso programa Uma Para te Contar hoje está de matar!
- Pensei que tivesse parado com as piadinhas.
- Ah ah ah. Eu não resisto. A conversa está muito boa, mas o tempo está acabando.
- Eu poderia jurar que esta fala é minha.
- Incrível o seu timing, Morte.
- Sim, sempre apareço na hora certa.
- Para finalizar, gostaria de deixar um recadinho para os seus fãs brasileiros?
- Sim, claro! Brasileiros, parem de pensar na morte da bezerra. Variem o tema. Pensem um pouco na morte do potro, do frango, sei lá... Podem pensar até mesmo na morte da originalidade, do bom gosto, da autenticidade. Isso seria tão mais produtivo para a breve vida de vocês. E quando nos encontrarmos, teremos assunto, né?
- Espetacular. Gente, eu sou Uma Q. Walker e este foi mais um programa Uma Para te Contar. Hoje entrevistamos a Morte. Obrigado, Morte, pela sua presença!
- De nada! Podemos ir embora agora?
- “Podemos”? Como assim?
- Ah, Uma, qualé... Você acha mesmo que eu vim aqui só dar uma entrevista? Chegou a sua hora, querida. Vamos nessa.

5 comentários:

  1. muuuito boa ... como sempre.Parabéns Mano

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  2. Eu faço questão de declarar publicamente: Sem dúvida, tu és um dos seres humanos mais brilhantes que eu já conheci nestes 48 anos de vida em sociedade...
    Este texto é ma-ra-vi-lho-so. Quero montar. Já concedeste os direitos de montagem pra alguém?
    Se, sim: Sniff, sniff
    (se tu não quiseres nem ouvir falar em Grace Gianoukas associada a um texto teu..podes usar essa mesma resposta)

    Se,não: eu venho por meio desta solicitar os direitos de montagemdeste texto genial.

    Bravo, Eliandix!!Teus textos estão cada vez melhores..(ou melhor???)
    Viu como é importante ser andarilho esquizofrenico....
    Love and bubbles

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