domingo, 26 de junho de 2011

O que os ouvidos não escutam o coração não sente

Você leria o livro de alguém que não sabe escrever? Iria à exposição de alguém que não sabe pintar? Comeria o prato de alguém que não sabe cozinhar? Iria pra cama com alguém que não sabe beijar? Abriria sociedade com alguém que não sabe ganhar dinheiro?
Se você tem coerência no coração (ao invés daquele carpinteiro que não desgrudava da prostituta) e respondeu “não” para as questões levantadas anteriormente, aqui está a pergunta que não quer calar: por que raios alguém deveria assistir à apresentação de alguém que não sabe cantar?
Não estou falando da Britney Spears (ainda). No momento estou mirando no conjuntinho monitor com legendas, caixa de som e microfone. Sim, ele mesmo: o karaokê. E venho aqui fazer um alerta sobre os riscos de cantar e cantar e cantar na beleza de ser um eterno aprendiz.
Você realmente acredita que o vulgo “videokê” é uma opção divertida? Cuidado! Talvez a produção de cera em seus ouvidos esteja chegando ao ponto da surdez irreversível. Comparecer a uma festinha de cantores de primeira viagem é uma lenta descida ao inferno, onde indivíduos aparentemente inofensivos resolvem arriscar uma performance vocal (leia-se um ataque de insuficiência respiratória amplificada por microfone) capaz de derreter o cérebro de qualquer um que tenha ouvidos mais sensíveis. É uma viagem sem volta à estrada da cacofonia.
Aqui temos o desabafo de Cíntia, nome fictício para preservar a autora do depoimento, onde relata como sua vida foi marcada depois de passar uma noite com amigos num bizarro show de calouros: “eu estava em casa, sem fazer nada, retirando esmalte das unhas com acetona e curtindo posts no Facebook, quando a Suzana me ligou convidando para ir num barzinho de videokê. De primeira recusei, até porque eu não sei cantar. Mas ela disse que o Serginho estaria lá, então eu pensei: que mal tem em ver algumas pessoas cantando? Vá que eu me divirta e ainda tiro uma lasquinha do Serginho... Chegando lá, senti um clima esquisito no ambiente. A expressão no rosto das pessoas era de ‘agora vocês vão ver a verdadeira estrela que há em mim’. A coisa pegou pra valer mesmo quando uma asmática arriscou Força Estranha do Roberto Carlos. Foi o começo de uma longa noite de dor e desespero. Depois disso, nunca mais vou conseguir encarar uma música da Marisa Monte. E nem ao menos consegui beijar o gato do Serginho”.
Mas o que leva uma pessoa desprovida de gogó cantar em público? Estaria ela em busca de aplausos de comiseração por parte de seus entes queridos? Por que ela simplesmente não canta no chuveiro como faz todo ser humano ciente de seus limites vocais? Ou será que habituês de karaokê não tomam banho? Muitas são as teorias que tentam explicar o sucesso desta invenção diabólica da terra do sol nascente. Nietzsche, por exemplo, especula sobre o desafio de sobreviver a uma sessão de karaokê a fim de se tornar uma pessoa melhor: "aquilo que não me destrói fortalece-me". Já Freud, que adora sensualizar, alega que não é uma simples questão musical, mas sim de ter o microfone, símbolo fálico do poder, em mãos.
Seja qual for a explicação para o sucesso deste vil entretenimento que faz Cazuza, Renato Russo e Elvis Presley se revirarem nos seus respectivos túmulos, o fato é que a disseminação da cultura de lamúrias microfonadas tomou proporções dantescas. Até o Multishow resolveu colocar legenda nos seus videoclipes, para se ter uma noção de tão nefasta influência.
Imbuidos do ditado que diz “quem canta seus males espanta”, os cantores de videokê estão construindo promissoras carreiras. São estrelas de forró, sertanejo e qualquer outro gênero com alcunha de “universitário”, mas que nunca passaram pela avaliação do MEC. Por outro lado, cresce a dissidência mais moderna, que faz pouco caso de regionalismos, capricham no figurino, na poker face e conseguem piorar a sua sofreguidão vocal com a utilização de vocoders e batidas eletrônicas. Em suma, não existe distinção de tribos: os filhos do karaokê estão espalhados pelo mundo. A Johnson & Johnson nunca vendeu tanto cotonete na sua história.
Muitos se perguntam onde foram parar as pessoas que realmente sabem cantar. Esta é uma questão bastante pertinente. Há os que acreditam numa grande greve de silêncio por parte dos artistas da categoria. Existe também a tese de que estão vendendo cachorro-quente numa van em frente ao estádio que lota com a apresentação das celebridades afônicas. Em algum momento ali atrás, música deixou de ser arte para se tornar uma disputa de auto-afirmação. E o microfone é de quem chegar primeiro.

3 comentários:

  1. Que pena Eliandro,pensei em irmos num restaurante que tem karaokê e você cantar m pouco de Roberto Carlos mesclado com Cauby Peixoto e Elvis.
    O " grande finale" com Britney Spears. eheheh. Você esta certo em tudo que escreveu.
    Não esqueça,que fazemos muitas coisas para fugir da realidade.Para brincar de " faz de conta" e de "esconde, esconde". Como sempre seu texto é otimo de ler. Abraços Sandra Mara

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  2. Eliandro:
    Como tb não sou nem um pouco adepto dos famigerados "karaokês" (nem em chuveiro posso cantar, a desafinação e a falta de ouvido musical são de nascença em mim), fico encafifado, como vc, pra saber onde as pessoas deixaram o "desconfiômetro" para se meterem em karaokês e passarem horas agredindo os ouvidos das pessoas!
    Como sempre, seu texto é uma delícia de ler e sempre muito bem-humorado!
    bjs
    Maurício

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  3. Ri alto aqui!suash Cheguei no teu blog pelo "Inadequadros". Muito bom. E sério, esse lance de karaokê é muita vergonha alheia. Dói mais que ouvidos, dói a alma mesmo, ashuhas E tipo, sobre o que leva as pessoas a fazerem isso, não sei...Se a vodka não explica fico com a definição freudiana do teu texto, ahsha.

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