terça-feira, 11 de agosto de 2009

Ritual Pagão

- Bom dia, senhor! Seja Bem-vindo ao Supermercado Pão-de-Mel! O senhor fez boas compras?
- Bom dia.
- O senhor fez boas compras?
- Sim, eu fiz.
- O senhor encontrou tudo o que procurava?
- Como?
- O senhor encontrou tudo o que procurava?
- Tudo o que eu procurava?
- Sim, senhor. O senhor encontrou tudo o que procurava?
- Tudo o que eu procurava? Tudo mesmo? Aqui neste mercado?
- Sim, senhor.
- Tipo, tudo tudo mesmo?
- O senhor encontrou tudo o que procurava?
- Não, eu não encontrei.
- Não, senhor?
- Não...
- E o senhor pode dizer o que não encontrou para que eu possa colocar na lista de pedidos?
- Um futuro melhor.
- Perdão, senhor?
- Olha, criança... Eu procuro muita coisa na vida. Um sentido, um caminho, uma esperança de que o futuro poderá ser melhor. Vamos concordar que é difícil de encontrar tudo isso num mercado.
- Desculpa, senhor. Não entendi.
- Podemos seguir em frente, por favor?
- Sim, senhor. O senhor possui o cartão fidelidade Pão-de-Mel?
- Olha... Eu sou fiel ao meu companheiro, aos meus amigos, à minha família, aos meus ideais, aos meus projetos de vida e a mim mesmo. Agora, sinceramente, não vejo o porquê de ser fiel a um supermercado.
- É porque o senhor, desta forma, pode concorrer a prêmios especiais nas campanhas do Supermercado Pão-de-Mel.
- E eu devo ser premiado por fazer compras num supermercado? Não seria interessante me premiar por ser um cidadão honesto? Ou por ter alcançado um invejável número de conquistas? Ou por tentar ser um consistente modelo de comportamento exemplar onde as futuras gerações possam se espelhar? PORQUE EU NÃO RECEBO UM CARTÃO FIDELIDADE SOLIDARIEDADE? OU UM CARTÃO FIDELIDADE INTEGRIDADE MORAL? HEIN? HEIN? HEIN?
- Hã, senhor...
- O QUÊ???
- O senhor vai pagar como?
- NO CARTÃO!!!!
- Sim, senhor. Crédito ou débito, senhor?
- O QUE QUE FOI?
- O que que foi o quê, senhor?
- O que está querendo insinuar com esta pergunta?
- Que pergunta, senhor?
- Ah, não se faça de desentendido, vai. “Crédito ou débito”, “crédito ou débito”...
- Esta pergunta é uma formalidade, senhor.
- Formalidade... Sei... Pois eu vou te dizer o estrago que acontece a uma pessoa desavisada quando esta pergunta ardilosa é proferida. Você tem sua mente devastada por um trauma irreversível. Você sai do supermercado sem perspectivas, sem horizontes...
- Perdão, senhor?
- Mas é só você prestar atenção! CRÉDITO ou DÉBITO? E se eu resolver pagar no débito? Isso significa que eu não tenho crédito? Pode ser que eu tenha, afinal, a omissão do crédito não significa que ele não exista. Mas a dúvida fica implícita: “ele vai pagar no débito, porque provavelmente não tem crédito”. Você percebe o quão devastador é para a alma de um ser humano perder o crédito? Ser um desacreditado, desprovido da cumplicidade alheia, sem conseguir estabelecer relações de confiança com seus semelhantes? Isso significa, obviamente, que a pessoa está em débito com a sociedade. E viver em débito, para alguém que procura sempre crescer, dar o seu melhor, é um peso impossível de carregar. NÃO, NÃO, NÃO! NÃO ME FAÇA ESTA PERGUNTA!
- Hã, posso fazer outra pergunta então, senhor?
- O que você quer saber agora?
- CPF na nota, senhor?
- Como assim?
- O senhor quer o CPF na nota? É uma campanha do governo, senhor.
- RÁ!!! ERA SÓ O QUE ME FALTAVA!!! PEDINDO DOCUMENTO PARA AVERIGUAÇÕES. Você está insinuando que eu não sou quem eu digo que eu sou?
- Mas o senhor não disse quem você é, senhor. Eu apenas preciso perguntar isso, senhor.
- Precisa perguntar, é? Realmente não confia na minha palavra. E aí só pode sobrar pra mim! Que fico aqui fazendo papel de BOBO! DE OTÁRIO! QUE NÃO TEM CRÉDITO! QUE VIVE EM DÉBITO! QUE NÃO TEM IDENTIDADE! QUE NÃO TEM UM NOME, UMA CARA, UMA ALMA DIGNA DE PIEDADE! Olha só, por favor, me prive da experiência da humilhação pública diante desta platéia de aturdidos com esta cena tão dantesca.
- Isto não é uma platéia, senhor. É a fila esperando para ser atendida.
- Claro, claro. “A fila anda”. É fácil para você me jogar isso na cara. Me tratando com o desprezo que eu mereço, não é? Como se eu fosse um destes ordinários sonsos que entram na fila do caixa rápido que permite até dez itens com um carrinho com mais de vinte produtos. E ainda tem a cara de pau, quando chamada a atenção, de dizer que o filho que acompanha vai pagar junto. Fui nivelado pelo chão, não é? Sou menos que nada pra você.
- Na verdade, senhor, “menos que nada” não. O correto são R$43,50.
- Okay, okay. Já percebi que não tenho como ganhar este embate. Você venceu. Tem troco pra R$50,00?
- Sim, senhor. Obrigado, Senhor! O Supermercado Pão-de-Mel agradece a preferência!

Um comentário:

  1. hahahaha!!! "Na verdade, senhor, “menos que nada” não. O correto são R$43,50."

    gostei muito, não sei pq, lembrei-me de Woody Allen...

    =D

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