quinta-feira, 16 de julho de 2009

Xadrez é o último grito

Meu nome é Gládis Ferreira. E sou decoradora. Mas não pensem vocês que sou uma decoradora qualquer. Eu trabalho com um diferencial que me destacou no mercado de decoração e arquitetura: sou especialista em grades.
Todo mundo sabe que, hoje em dia, a gente não vive mais em casas e apartamentos. Nada disso. Moramos em jaulas, gaiolas e prisões. A grade é um item de necessidade básica na construção ou reforma de um lar. É mais importante que um vaso sanitário. Isso mesmo! Afinal, você até se vira com um penico. Mas e a janela aberta? Quem garante a noite de sono sem uma gradezinha bem instalada? E não adianta morar no décimo terceiro andar. Os saqueadores estão cada vez mais criativos para invadir os nossos lares. Até rapel esta gentalha anda aprendendo para dar um jeito de surrupiar os bens dos outros.
Mas eu não tenho do que reclamar, viu? Graças à bandidagem, eu fiquei rica. E claro que eles não estariam por aí, impunes, roubando, vandalizando e surrupiando o trabalho suado da vida alheia se não fosse por alguns eficientes colaboradores. O primeiro deles, claro, é a televisão, que incentiva de forma categórica a prática de violência gratuita. Gente, é muito simples: a televisão é um alvará para tudo aquilo que ela expõe. Por exemplo: dois rapazes se beijando, em declarada demonstração homoafetiva, não pode e nem aparece na TV. Então ninguém faz isso na rua, porque se a televisão disse que não pode, então é melhor ter muita vergonha disso. Agora, o vandalismo estúpido promovido por torcidas de futebol descontroladas, que aparece nos telejornais dia sim e dia também, é um atestado de encorajamento para o jovenzinho da periferia, que tem a cabeça fraca e carente de boas idéias. Graças à televisão, uma massa pavorosa de torcedores de futebol acaba torcendo para que o seu time perca, só para ter motivo de sair destruindo tudo e espancando transeuntes pelo caminho (e quem sabe aparecer na telinha!). Aproveitando esta dinâmica, pensando nos gays que precisam se esconder para namorar e fugir destas “torcidas organizadas”, eu tenho o Kit Diversidade: um lindo conjunto de grades para janelas nas cores do arco-íris com entalhe de nuvenzinhas. Um arraso!!!
Na seqüência, temos o poder público, que, ainda bem, não faz a menor menção de legalizar o uso de uma série de drogas bobas, dessas mais fracas que cigarro e álcool. Assim, acaba enriquecendo ainda mais a indústria do tráfico. Desta forma, os traficantes compram mais e mais armas e promovem disputas de território. Nas ruas, é claro! Disputas estas que só não invadem as casas das temerosas famílias, porque o meu Kit Caged Family é um sucesso de vendas! Grades que cercam toda a residência e mantém as guerrilhas urbanas lá na calçada, onde fica a terra de ninguém.
Por fim, temos a santa Igreja. Louvada seja! Que condena o uso de preservativos e combate com afinco o planejamento familiar. Promovendo o sexo culpado e desenfreado em comunidades sem estrutura e, assim, culminando no descontrolado aumento populacional. Com isso, vem a falta de oportunidade, a frustração fomentada pela publicidade (que só agracia a fatia rica da sociedade) e, tcha-na-nãããmmm!, temos uma verdadeira indústria da violência produzindo meliantes a todo vapor. Aleluia, senhor! Em homenagem à Igreja, eu vendo o Kit Amém, com grades trabalhadas em rococó perfeitas para combinar com o altar de santos de sua casa.
Pois, é, minha gente, mesmo com o mercado fervilhando de oportunidades, eu não virei uma especialista em grades decorativas da noite pro dia. Se não fosse o apoio de minha família, talvez eu nunca estivesse neste ramo. Como foram todos presos em algum momento, eu era obrigada a visitá-los na prisão. E a minha convivência com as grades começou a se tornar cada vez mais forte. Era uma questão de tempo até vir o insight!
Começou com o meu marido. Coitado... Trabalhando dia após dia na sua empresa. Batalhando o pão nosso de cada dia. E o governo despejando impostos e mais impostos. As cobranças eram tantas que chegou num ponto em que ele estava pagando pra trabalhar. Como muitos, resolveu sonegar. Até que, certo dia, a malha fina o pegou e ele foi preso. Mas eu não desisti dele. Estive com ele, mesmo ele estando atrás das grades.
Depois foi meu filho. Como todo jovem da sua idade, consome tudo o que a MTV e o canal Multishow oferecem como cultura. E hoje em dia, o que se entende por cultura, como todos sabem, nada mais é do que a glamourização da vulgaridade. O menino escutou tanto hip hop americano, mas ficou tão bitolado nesta onda, que não deu outra: começou a seguir a cartilha dos seus ídolos e passou a molestar garotas e praticar algumas contravenções. Foi preso deprendando orelhões públicos. Eu, como mãe, não podia deixar de ser solidária. E lá estavam as grades entre mim e meu filho.
Ainda teve a minha irmã, que sofreu uma overdose de expectativas sociais. Graças à Revista Nova e ao Programa Saia Justa, ela entrou numas de que tinha que ser mulher, empresária, amiga, mãe, esposa, sexualmente realizada, engajada e antenada com uma centena de assuntos que não fariam a menor diferença na vida dela. Este estilo de vida promovido pela mídia especializada acabou criando um buraco na alma da minha irmã. Uma sensação de vazio, de impotência diante de tantas expectativas cruéis e instransponíveis para uma pessoa normal. Disso para as drogas foi um pulo. Começou inocente, com água de melissa, passou para outros calmantes e antidepressivos. Acabou conhecendo um pessoal do balaco-baco, que dava umas festinhas do arromba. Numa dessas deu uma batida policial. E o resto dá pra imaginar. Lá estava eu solidarizando com a minha irmã no xadrez. Afinal, família é família.
Mas o que mais me incomodava em ter que ir na prisão, nem era a vergonha de ter um familiar preso. Afinal, o crime está mais que instituído na sociedade. Ninguém mais se surpreende com delitos. É atriz de Hollywood roubando roupas, rabino roubando gravatas. E por aí vai. O que me incomodava realmente eram aquelas grades horrorosas da prisão. Foi aí que tive a ideia de redefinir a estética das grades e reintroduzí-las no mercado enquanto conceito de proteção fashion, agregando valores de design, consumo direcionado e, claro, lucrando muito com isso.
Então, pessoal, por favor. Tenham medo. Mas muito medo! E fiquem atrás das grades com estilo! Basta me chamar!

4 comentários:

  1. Quero encomendar uma grade pra minha tv e outra pro meu pc.

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  2. Cara Gládis,
    Vc trabalha com grades transparentes ou translúcidas em algum material resistente?
    É para o meu cachão, tenho ouvido histórias horríveis sobre saqueadores de túmulos.
    Bj,
    Kreicy Kelly

    Falando sério Eliandro,
    Vc escreve melhor a cada post.Parabéns!
    Realmente vivemos mal "cercados" pela "santa trindade": TV, poder público e a Igreja apostólica romana.
    Faoza

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  3. Como li em uma mensagem no orkut, parece uma esquete do Terça Insana. Muito bom.

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